Valéria Dias, presente

Marcello Rollemberg é jornalista, editor de Cultura do Jornal da USP e fez parte da banca que contratou Valéria Dias no ano 2000

 Publicado: 24/07/2024
Valéria Dias - Foto: Cecília Bastos
Marcello Rollemberg – Foto: Cecília Bastos/USP Imagem

 

 

Como se dribla a morte? Como você a engana? Antes que se perca um segundo para se buscar a resposta, ela já é dada: não, não se dribla a morte. Ela não se deixa enganar. Afinal, é a única certeza inexorável que temos, desde o nosso primeiro choro na maternidade. Mas ela pode ser, sim, postergada. A ciência tem mostrado isso, ano após ano. Mas mais que isso: para vencer a morte, mesmo que metaforicamente, ela deve ser confrontada. Enfrentada. Por vezes até ridicularizada. Porque se essa senhora ceifadora é inexorável, nós também somos: por tudo o que fizemos, por tudo o que fomos, por tudo o que deixamos e plantamos. Nossa história também é inexorável. Porque se uma ceifa, outros – nós todos – plantamos. Há um tempo de plantar e um tempo de colher. Há um tempo de nascer e um tempo de morrer. Entre um e outro, vivemos. E confrontamos a morte. Como a jornalista Valéria Dias a confrontou. 

Valéria se foi no último dia 23 de julho, aos 51 anos – 24 dos quais trabalhando primeiro como repórter da antiga Agência USP de Notícias, depois como subeditora de Ciências do Jornal da USP, ambos veículos da Superintendência de Comunicação Social da Universidade de São Paulo. Por quase um quarto de século, Valéria Dias fez seu trabalho com eficiência, talento, dedicação e uma seriedade que se tornaram sua marca. E também fez amigos, mais do que colegas, compartilhou expectativas, desfrutou de conquistas e ajudou a tornar o jornalismo feito na USP respeitado e conceituado para bem além dos muros da Universidade. Mas ela se foi confrontando por quase nove meses sua algoz. E deixando um legado de luta, perseverança e otimismo – mesmo quando todas expectativas apontavam para uma outra polaridade.

Valéria era, além de uma excelente repórter – aquela função precípua da qual nenhum jornalista deve abrir mão, independentemente da hierarquia dentro de uma redação –, uma grande contadora de histórias, uma bela narradora. Como, aliás, todo bom repórter deve ser. E nos últimos meses, Valéria Dias decidiu narrar sua própria história. Com generosidade e mesmo coragem, ela expôs o nervo e contou, no Jornal da USP, sua luta contra aquela doença que por muitos anos ninguém ousava dizer o nome e mesmo hoje causa calafrios, pânico: câncer.

Em quatro artigos, publicados entre março e maio, Valéria Dias convidou o leitor a conhecer seu drama pessoal, desde a descoberta da doença e passando por uma via dolorosa particular: as notícias cada vez mais assustadoras, a bóias de esperança, passando pelas dores excruciantes até o tratamento que misturava alívio e riscos. Dramática? Piegas? Nada disso, de forma alguma. Nunca. Em nenhum momento Val – como nós amigos a chamávamos – fez qualquer concessão ao vitimismo ou à autocomiseração. Não fazia parte de sua personalidade séria, determinada, sem exageros. Na verdade, o que ela fez foi compartilhar seus momentos de vida e luta, quase como uma repórter extremamente participativa que enveredou na apuração mais difícil de todas: a de sua dor e de seus medos, com lampejos de esperança. 

Val não teve vergonha de se mostrar sem cabelos, não teve medo de revelar as angústias diárias. Na verdade, ao mostrar sua voz na doença, ela amplificou as vozes de tantos milhares Brasil afora que padecem do mesmo mal e não têm voz, não têm expectativas. Não têm sequer condições de se tratar. E muitas vezes, não recebem a empatia necessária. Aí, mais uma vez, a generosidade de Valéria Dias: ela foi empática, ao mesmo tempo em que não quis piedade. Ela se mostrou forte onde muitos sucumbem. E ao demonstrar uma fortaleza que nem sabemos de onde vem nessas horas, ela fortaleceu a luta de muitos. É no que acredito.

E ela soube também comemorar a vida. Como em seu primeiro artigo, no qual relata a descoberta do câncer, sua ignorância inicial sobre a doença – por mais que fosse jornalista de ciências há décadas – e de como resolveu enfrentar o mal. De várias formas. Entre elas, comemorando a vida assistindo ao show de Paul McCartney em 16 de dezembro do ano passado. Aos shows, na verdade: no dia seguinte, ela foi de novo. 

E agora, para marcar, para simbolizar, a palavra final é dela. A lição final é de Val:

“Com certeza um dia irei morrer, seja de câncer ou de qualquer outra coisa. Não faço a menor ideia como e quando isso vai acontecer. Mas podem ter certeza que no dia em que a morte chegar perto de mim, eu vou olhar para ela e ela vai me encontrar muito, muito, muito viva: minha existência vai ‘provar que existe vida antes da morte’. E eu irei embora, a contragosto, mas tenham certeza que terei vivido uma vida plena. Isso é o que importa.”

Valéria Dias, presente.

 


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