Uma fórmula para remediar desigualdades raciais?

Por Rogério Monteiro de Siqueira, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

 26/06/2023 - Publicado há 1 ano
Rogério Monteiro de Siqueira – Foto: Arquivo pessoal
A Universidade de São Paulo aprovou recentemente em seu Conselho Universitário (Co) uma política afirmativa para pretos, pardos e indígenas (PPI) nos concursos da carreira docente e de funcionários administrativos. O objetivo do texto aprovado era uma “maior inclusão e diversidade dentro da Universidade”, em resposta a uma demanda da sociedade e da Universidade, como ressaltou o reitor na reunião do Co.

Quem acompanhou os debates no Conselho pôde perceber que não há recusas, pelo menos públicas, de que é preciso fazer alguma coisa em relação às desigualdades raciais na USP. Documentos oficiais falam em 2,3% de docentes PPI nos quadros da USP, enquanto levantamento recente da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) fala em 8,5%, face aos 37% de PPI na população em geral do Estado de São Paulo. No entanto, quando se trata de construir uma resposta concreta ao problema, a Universidade parece se dividir entre aqueles que efusivamente propõem soluções e os que levantam dúvidas a todo tempo sobre a legalidade e a qualidade das políticas.

Não vou entrar na seara das razões pessoais e sociais pelas quais alguns colegas, alunos e funcionários levantam dúvidas e praticam a recusa de políticas bastante difundidas no sistema das universidades federais e em várias universidades internacionais. A bibliografia sobre o medo do outro, do estranho, que adentra a nossa sala é farta. E os modos como os paulistas procuraram se diferenciar do resto do Brasil através da fundação da Universidade de São Paulo – também fartamente demonstrados na historiografia sobre a fundação da USP – parecem irretocáveis na identidade uspiana, quando ouvimos os discursos do último Conselho Universitário. Tudo se passa como se a Universidade quisesse se apresentar na vanguarda, mas sempre atenta aos seus ideais conservadores de distinção.

Um dos traços dos sistemas sociais longevos e estáveis, como o nosso, é justamente construir mecanismos conscientes e inconscientes de reprodução das suas hierarquias. Muitos de nossos colegas realmente acreditam que o sistema de ensino uspiano não compactua com as desigualdades raciais do País, posto que aqui se defende a todo o custo o mérito. Outros acreditam que a desigualdade racial presente no corpo docente irá desaparecer naturalmente, ou, na melhor das hipóteses, diminuirá em resposta às políticas exitosas implementadas na graduação. Mais negros na graduação, mais professores negros na universidade.

Devemos comemorar, portanto, que finalmente a máquina uspiana se entreabriu contra suas hierarquias, inovando no terreno das igualdades. De fato, muito trabalho nesse terreno tem sido feito, dentro e fora da Reitoria, e por muitos colegas, a quem precisamos agradecer. Sim, festejemos. Mas não sem antes reparar em dois elementos indistintamente inovadores e conservadores dessa história.

Em primeiro lugar, é dever de ofício registrar que foi o Ministério Público que nos lembrou enfaticamente que não cumpríamos um decreto estadual, cuja versão original é de 2013. O decreto nº 63.979, de 19 de dezembro de 2018, utilizado como referência para o sistema que a USP acaba de aprovar, determina quanto deve ser acrescido na pontuação final dos candidatos PPI, mas a ideia do acréscimo foi lavrada no projeto de lei complementar nº 58, de 2013. E, se nos apegamos às genealogias, o referido projeto menciona um outro decreto, de 2003, que “instituiu para a Administração Pública a Política de Ações Afirmativas para Afrodescendentes”. Ou seja, a Universidade de São Paulo responde aos regramentos do Estado somente vinte anos depois.

Um segundo elemento da inovação do último Co, que me parece interessante ressaltar, diz respeito justamente ao uso de uma fórmula de acréscimo na pontuação dos candidatos PPI. Falou-se a plenos pulmões no Co que a reserva de vagas é ilegal e que, portanto, o mais seguro seria adotar um fator de correção nas notas dos candidatos PPI, habilitados no concurso. Deixemos de lado o fato da Universidade de São Paulo voltar as suas costas às políticas de cotas e de reserva de vagas instituídas em muitas das universidades federais, que funcionam legalmente há bastante tempo, e nos atentemos à engenharia social que a fórmula embute.

A sugestão do decreto de 2013 é acrescentar às notas dos candidatos PPI a seguinte porcentagem:

Nessa fórmula MCA é a média das notas dos candidatos habilitados em concorrência ampla e MCPPI é a média das notas dos candidatos PPI habilitados. O cálculo somente é feito quando a primeira média é maior que a segunda, ou seja, quando os candidatos PPI vão em geral pior que o restante. O texto do decreto não conta, mas quando operamos esse aumento nas notas dos candidatos PPI, as médias dos dois grupos se equiparam. Aos olhos do Governo Estadual e, agora, da Universidade, a fórmula materializa a tal equidade racial, que consta no preâmbulo do decreto.

Muitos colegas ficaram preocupados de que tal estratagema pudesse aprovar possíveis candidatos PPI sem qualificação, por isso a regra foi construída a partir dos habilitados, ou seja, aqueles com nota maior ou igual a sete, como dita o regimento da USP. Outros disseram que o acréscimo é pequeno e que não ajudará os candidatos PPI.

Na verdade, em um caso extremo e improvável, em que todos os PPI tirassem 7 e o restante dos candidatos tirassem 10, a fórmula aumentaria em 42% na nota dos PPI, igualando todas as notas. Na prática, a depender da diferença das médias, o acréscimo acaba fazendo menos do que isso. Caso as diferenças das médias sejam, por exemplo, de 0,5, 1 ou 2 pontos, acrescenta-se respectivamente 7%, 12%, ou 27% às notas dos candidatos PPI. Em alguns exemplos estudados, isso significou o aumento de 0,5 até 2 pontos. Isto tudo para concursos de uma ou duas vagas, o que na prática significa todos os concursos para docentes da Universidade.

Se os candidatos PPI são tão bons quanto os de concorrência ampla, o acréscimo será em geral bem pequeno. O tempo dirá se isso será suficiente como política de equidade. Muitos, com razão, duvidam. Qual ciência vencerá?

Mas quem já leu alguma coisa da história das estatísticas, ou sobre a sociologia das classificações, sabe que é preciso desconfiar das escolhas dos números. A Falsa Medida do Homem, de Jay Gould, é um belo levantamento de casos problemáticos, fundamentalmente organizados a partir da ideia de que os números seriam desembaraçados dos interesses pessoais. Essa grande confiança nos números é, a meu ver, o grande equívoco da recente decisão do Conselho Universitário sobre o destino dos jovens doutores negros e negras.

De fato, nos concursos do Estado de São Paulo, geralmente as notas são atribuídas às cegas, por computadores, a partir de provas de múltipla escolha. Na USP, no caso de concursos de docentes, atribuímos as notas olhando para os autores das provas. A aula pública, por exemplo, mobiliza uma série de elementos ligados à boa aparência, ao falar bem, a elementos de distinção de classe. O mérito mobilizado nos concursos – acúmulo das oportunidades de pesquisa científica e das recompensas simbólicas e materiais advindas dessas oportunidades, segundo Robert Merton – é indissociável, na sociologia do conhecimento recente, da origem social. Cor, raça e gênero incidem no sucesso da vida profissional posterior.

Ora, é exatamente essa associação naturalizada entre “se portar bem” e raça branca que tem sido mote de crítica severa nas pesquisas sobre desigualdades raciais. Negros são barrados e inquiridos sobre a sua presença em toda sorte de lugares cultivados pela elite do País, e esta universidade não é diferente. Todos nós, professores pretos e pardos, temos um bolso cheio de histórias constrangedoras para contar. Segundo levantamento da PRIP, bancas recentes de concurso para professores temporários aprovaram 10% de professores PPI, mas para vagas definitivas o número caiu para 3%. A presença obrigatória de um avaliador PPI nas bancas de contratação melhora a diversidade das avaliações, mas é apenas um voto. A reserva de vagas certamente remediaria essas questões e garantiria uma maior rapidez na política afirmativa.

Fica claro, portanto, que a apropriação da fórmula desconsidera suas condições originais de operação e assume uma distância entre avaliador e avaliado que não existe nos concursos da Universidade. Se formos dar seguimento à decisão do Conselho Universitário, que é soberana, muitos ajustes terão que ser feitos para que cheguemos aos desejados 37% de docentes negras e negros na Universidade de São Paulo.

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