Nessas duas semanas de competições já foram produzidos alguns fatos para uma longa reflexão. Nunca antes em uma Copa do Mundo os meios de comunicação brasileiros falaram e apontaram tanto assédio contra mulheres. Não que em edições anteriores isso não tenha acontecido, mas porque esse tema agora é sensível a nós, muito embora não à totalidade. Cenas jocosas que tempos atrás seriam reproduzidas em memes ou chistes são agora entendidas como crime que pode levar os incautos executores aos tribunais. Justo. Dura lex sede lex mesmo na terra dos czares.
A tecnologia não deixa margens a dúvidas quanto à identidade do executor do crime. E o que foi uma piada “condimentada” no passado agora se configura como desrespeito, mau-caratismo, falta de educação de alguns homens que tiveram as condições materiais de se deslocar para o outro lado do planeta, mas não fizeram jus à educação que deveriam ter tido. A multiplicação das mídias, a descentralização dos meios e o acesso dos simples mortais a redes que podem viralizar uma única imagem facilitam a exposição de cenas que antes ficavam registradas na memória dos executores e dos poucos expectadores de uma cena grotesca. Isso por si só deveria ser razão suficiente para que o superego desses seres já estivesse calibrado para que seus comportamentos públicos fossem menos hostis. Entretanto, as cenas gravadas por inúmeros smartphones provam que ainda prevalece a onipotência da possível isenção da culpa.
E essa mesma tecnologia parece ser um dos motivos para se lembrar no futuro da Copa do Mundo da Rússia. Pela primeira vez na história, o futebol se rende aos recursos já usados em tantas outras modalidades esportivas também midiáticas. O photo finish foi um recurso inventado nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1932, para determinar o vencedor das provas de atletismo. Entendiam os organizadores da época que era muito difícil ao olho e cérebro humanos registrar, discriminar e decidir pelo resultado de provas tão acirradas apenas com o instante do olhar do momento. Além da responsabilidade que isso acarretava ao árbitro, pensava-se nos desdobramentos para o atleta que competia.
Como avaliar se a cabeça havia chegado antes que o tronco ou as pernas, entre oito concorrentes? A foto era uma invenção de pouco tempo, mas era o registro inequívoco de um momento. Décadas depois o tênis, o basquete, o vôlei, o futebol americano também entenderam que a dúvida desencadeada por uma decisão equivocada do árbitro retirava o brilho da vitória de uma batalha sem mortes físicas no campo esportivo. Além disso, podia levar um bravo guerreiro a sucumbir diante da derrota injusta, com a perda de contratos ou novas oportunidades competitivas. Daí o uso dos recursos da tecnologia do momento como o videoteipe, o slow motion e a presença de mais de uma pessoa para dar o veredito quanto a um lance duvidoso.
O que parece digno de nota dessa reconstrução do ato de julgar é que o fair play, um dos pilares dos valores do esporte, a ética olímpica, presume a introjeção da justiça para que o jogo seja um espaço de construção justa, para que prevaleça a vitória do melhor, do mais bem treinado, do mais habilidoso. Esse valor esportivo fundamental sofre, ao longo das últimas décadas, a mesma crise que outros tantos valores sociais em virtude da crise decorrente da desumanização.
E mais uma vez, o futebol rompe a lógica das demais modalidades esportivas, mostrando-se distinto dentro do esporte. Cede à pressão tecnológica, mas não recua quanto ao domínio do poder, dando não ao atleta ou ao técnico o direito de questionar um lance duvidoso. Mantém sob seu controle a decisão sobre avaliar se um ato em campo foi ilícito ou não. Reforça a autoridade do juiz de campo, de linha, de vídeo, mostrando ao mundo que súplicas são desnecessárias dentro do chamado esporte bretão. A estrutura de poder da Fifa se mostra inabalável dentro e fora das quatro linhas.
O futebol visto na Rússia difere em muito de outras Copas. Não haverá a mão divina de Maradona ou o gol inexistente da Inglaterra na prorrogação em 1966 a definir um título. Ninguém discutirá a vitória roubada do Brasil sobre a Espanha, na Copa de 1962, com a marcação de um pênalti inexistente e a anulação do gol de bicicleta legítimo de Puskás.
O futebol visto na Rússia difere em muito de outras Copas. Não haverá a mão divina de Maradona ou o gol inexistente da Inglaterra na prorrogação em 1966 a definir um título. Ninguém discutirá a vitória roubada do Brasil sobre a Espanha, na Copa de 1962, com a marcação de um pênalti inexistente e a anulação do gol de bicicleta legítimo de Puskás. Por maior que seja a capacidade dramática de simulação de um jogador, ela já não mais fará um tento injustamente. Tombos, escorregões, lesões agora são avaliados quadro a quadro, permitindo que o público dentro e fora dos estádios possa julgar e discriminar um craque de um biltre trapaceiro vigarista. Esta Copa prova que o futebol mudou, se rendeu ao contemporâneo. E não cabem outros julgamentos. Como na fábula chinesa, dizer se isso é bom ou ruim dependerá sempre de outros elementos alheios ao jogo.
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