Impasses no teatro brasileiro em 1968

João Roberto Faria é professor titular sênior de Literatura Brasileira da USP e especialista em Teatro Brasileiro

 30/10/2018 - Publicado há 6 anos


Cena de O rei da vela, de Oswald de Andrade, escrita em 1933 e montada pelo Teatro Oficina em 1967, direção de José Celso Martinez Corrêa – Foto: Divulgação CosacNaify via revista Pesquisa Fapesp

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João Roberto Gomes de Faria – Foto: Francisco Emolo / USP Imagens

Talvez o ano mais trágico de toda a história do teatro brasileiro.” Assim se refere ao ano de 1968 o crítico teatral Yan Michalski, no livro O teatro sob pressão, tantas as agressões sofridas por essa forma de arte pela ditadura militar. Desde abril de 1964 jogado às cordas, acuado e reprimido, nosso teatro conseguiu reagir e dar respostas contundentes ao violento autoritarismo que censurou e mutilou dezenas de peças e espetáculos, até que foi nocauteado pelo AI-5, em dezembro de 1968. Se até então havia se tornado a principal frente artística de resistência à ditadura, nos chamados “anos de chumbo” teve que recuar para sobreviver, voltando a atuar com vigor político no período da distensão do regime, na segunda metade da década de 1970.

Lembrar os acontecimentos de 1968 relativos ao teatro, cinquenta anos depois, ainda que sucintamente, pode ser um saudável exercício mnemônico para que a história não seja esquecida e para que o conhecimento do passado nos ajude a avaliar o tempo presente e a preservar o apreço às liberdades democráticas.

Caetano Veloso vestindo “Parangolé P4 capa 1” – Foto: Divulgação CosacNaify via revista Pesquisa Fapesp

Ao abrir-se o ano de 1968, repercutia ainda o grande acontecimento teatral de 1967: a encenação de O rei da vela, de Oswald de Andrade, no Teatro Oficina. O diretor José Celso Martinez Corrêa havia escrito um manifesto, no qual renegava o teatro de esquerda nos moldes em que vinha sendo feito principalmente pelo Teatro de Arena em São Paulo e pelo Grupo Opinião no Rio de Janeiro. No lugar daquele “encantamento” que procurava aliciar o espectador para as suas causas, o diretor propunha a porrada, a agressão para tirar o espectador de sua letargia. Queria, também, apresentar a sua visão da “chacriníssima realidade nacional”.

Os intelectuais de esquerda não gostaram da montagem e a sentiram como uma ruptura. Boal havia trabalhado com José Celso em espetáculos patrocinados pelo Arena e Oficina. Mas, presente à estreia, teria dito a Caetano Veloso, conforme se lê em Verdade tropical, que não gostou e que preferia Vianinha.

Revista aParte, número1: Che Guevara – Vietnã – Foto: reprodução / Publicação Tusp

As diferentes posturas políticas dos dois diretores ficaram mais claras no início de 1968. No número 1 da revista aParte, do Tusp, ambos foram entrevistados e Boal fez a defesa do engajamento e dos artistas de esquerda, afirmando que, apesar de tudo, “o teatro mais esclarecido não se cansou de botar a boca no mundo durante os primeiros anos da ditadura”. Já as respostas de José Celso caíram como uma bomba no meio teatral, pois ele afirma não mais acreditar na eficácia do teatro preocupado com o proselitismo político. Nessa altura, já havia realizado uma segunda encenação mais agressiva que a anterior, a de Roda viva, de Chico Buarque, no Rio de Janeiro.

Os intelectuais de esquerda não gostaram da montagem [de ‘O rei da vela’] e a sentiram como uma ruptura.

O debate teatral continua no segundo número da revista aParte. Os estudantes do Tusp, que estão em cena com Os fuzis de Dona Tereza Carrar, de Brecht, redigem um editorial para criticar tanto Boal quanto José Celso. Assim como o espetáculo dirigido por Flávio Império sugeria a luta armada como caminho para o fim da ditadura, também o editorial desqualificava a pretensa “eficácia política” dos dois diretores.

Nesse clima de radicalização, a censura recrudesce e proíbe várias peças. Os teatros de São Paulo e Rio de Janeiro entram em greve por três dias. O presidente Costa e Silva comenta na televisão a “imoralidade” da peça Santidade, de José Vicente. Em São Paulo, o Comando de Caça aos Comunistas, em julho, invade o teatro em que estava em cartaz Roda viva e espanca os artistas, agressão que se repete em Porto Alegre, três meses depois. Artistas que ensaiavam Navalha na carne, de Plínio Marcos, são ameaçados de espancamento. No Rio, o diretor Flávio Rangel é detido pela polícia e tem a cabeça raspada.

Montagem de Flávio Império para Os fuzis da Senhora Carrar, em 1968 – Foto: Victor Knoll / Acervo Sociedade Cultural Flávio Império

Entre as respostas corajosas dos artistas às agressões, vale a pena lembrar o ato de “desobediência civil” de Cacilda Becker. No dia 7 de junho de 1968, ela desafia a censura, que havia feito 71 cortes na montagem de Feira Paulista de Opinião, e se responsabiliza pela sua apresentação na íntegra. No programa do espetáculo, Boal faz uma análise da situação do teatro brasileiro e responde às críticas que José Celso havia desferido ao teatro de esquerda em sua entrevista à revista aParte.

Boal começa por uma exortação aos intelectuais para que permaneçam unidos no enfrentamento dos reacionários, ainda que haja divergências entre eles. A seu ver há três linhas principais no teatro de esquerda: a primeira é o “neo-realismo”, que tem como autor principal Plínio Marcos. A segunda, denominada “sempre de pé”, tem nos musicais do Arena seus melhores exemplos. A terceira é pejorativamente chamada de “Chacrinha e Dercy de Sapato Branco”. E os alvos são o teatro feito por José Celso, a partir de O rei da vela, e o Tropicalismo. Politicamente, diz, é uma tendência que, “tendo sua origem na esquerda, mais se aproxima da direita”. Respondia também a algumas afirmações de José Celso que lhe pareceram “grosseiras” e “verdadeiramente canalhas”.

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