Fundo patrimonial: o que é isso?

Otaviano Helene é professor sênior do Instituto de Física (IF) da USP

 13/12/2018 - Publicado há 6 anos

Otaviano Augusto Helene – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Embora a ideia de um fundo patrimonial destinado a uma instituição pública de ensino superior, ou a algumas de suas unidades, tenha surgido várias vezes ao longo do tempo, tal proposta vem ganhando corpo mais recentemente, tanto em declarações verbais, como em reportagens, artigos assinados em jornais, etc. Entretanto, todas as análises são muito superficiais e, assim, cada pessoa acaba por fazer a imagem que quer sobre tal tipo de fundo, sem ter ideia sobre suas características, suas origens, como funcionam nos diversos países, onde existem e onde não existem, suas possibilidades, os valores envolvidos etc.

 

         O que são tais fundos e onde eles existem?

Fundos patrimoniais são recursos, principalmente monetários, que estão à disposição de uma instituição para que esta destine seus rendimentos e eventuais novos aportes para determinadas funções bem definidas, procurando-se manter intacto o valor do patrimônio. Esses fundos são comumente chamados de endowments, em particular quando se referem aos recursos cuja origem é fruto de doações.

Como regra, fundos patrimoniais de universidades que contêm com valores significativos, considerando-se o tamanho das instituições, são típicos apenas nas pequenas e caras instituições privadas dos EUA. Nas grandes instituições privadas e nas universidades públicas daquele país, esses fundos são, comparativamente, muito menores ou, mesmo, inexistentes.

Nos demais países, com raras exceções, não existem tais fundos. Eventuais recursos monetários colocados à disposição de uma instituição pública pelo governo que a mantém, com destinação bem definida, podem parecer com os endowments das pequenas instituições privadas norte-americanas, mas têm caráter bem diferente.

Vejamos alguns exemplos. Nos EUA, a enorme maioria dos estudantes de nível superior está matriculada em instituições públicas[i]. Dos matriculados em instituições privadas, apenas uma pequena parte está em alguma das seletas instituições que se dedicam a formar os quadros dominantes daquele país[ii], bastante pequenas em termos do número de estudantes, mas com enormes fundos patrimoniais (os tais endowments). Por exemplo, a Universidade de Princeton, com pouco mais do que cinco mil alunos de graduação e menos do que três mil de pós, portanto menor do que a FFLCH ou a Escola Politécnica da USP, tem um fundo patrimonial de 25 bilhões de dólares, ou 3 milhões por aluno. As demais pequenas universidades privadas de elite dos EUA também têm fundos patrimoniais por estudante aproximadamente da mesma ordem de magnitude.

Além desses dois sistemas universitários, o estado da Califórnia mantém uma rede de cursos superiores de curta duração, chamados de community colleges, com cerca de dois milhões de matrículas

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Fundos patrimoniais de algumas instituições de ensino superior e pesquisa


* Oxford é financiada por recursos públicos, mas a legislação permite que ela, apenas por decisões internas, se transforme em uma instituição totalmente privada não estatal.

Nos demais países, fundos patrimoniais de universidades públicas, quando existem, são bem menores do que aqueles das similares dos EUA. Além disso, os poucos que existem, têm, como regra, origens e finalidades diferentes, sendo, muitas vezes, apenas recursos disponibilizados às instituições pelos governos mantenedores.

Em resumo, fundos patrimoniais são coisas típicas das pequenas e caras universidades privadas nos EUA.

 

         Qual a origem dos fundos patrimoniais nos EUA?

Uma resposta poderia ser: doações feitas por pessoas muito ricas, frequentemente as que lá se formaram, que permitiram a criação de enormes patrimônios à disposição daquelas pequenas instituições, que, depois, foram mantidas e engrossadas por novas doações. Embora correta, essa resposta não explica tudo; alguns outros fatos precisam ser considerados.

Os valores máximos dos impostos sobre heranças e doações nos EUA, aqueles que atingem os grandes patrimônios, ficaram entre meados da década de 1930 e aproximadamente 1980, próximos dos 80%[iii]. Como ocorre com impostos diretos, o imposto sobre herança é aplicado por faixas: pequenos valores são transferidos aos herdeiros sem qualquer taxação; valores em uma faixa intermediária são taxados com determinada alíquota; uma faixa superior é taxada mais intensamente etc. Finalmente, valores que excedem determinado limite são taxados com alíquota máxima. Assim, quando algum bilionário doa, a parte doada é a que seria taxada pela alíquota máxima. Consequentemente, o efeito sobre o patrimônio a ser transferido a herdeiros pode ser muito pequeno. Além disso, os termos de doação podem incluir vantagens materiais tanto ao doador como a seus herdeiros.

Muitas universidades de ponta dos EUA foram constituídas, no século XIX, por doações feitas pelos chamados “barões ladrões”, pessoas que enriqueceram muito usando métodos inescrupulosos e ilegais. Talvez essa seja outra das vantagens de se fazer uma doação: melhorar uma imagem pouco merecedora de elogios e, consequentemente, transferir essa imagem aos descendentes. Perde-se um pouco de dinheiro, mas ganha-se algum prestígio.

Um outro aspecto importante a se examinar é o fato que as doações para instituições privadas são muitas vezes maiores do que as doações para instituições públicas. Uma razão para isso é que com as primeiras é possível negociar as condições da doação, definindo o destino do patrimônio doado, o que não ocorre com as segundas. Essa possibilidade pode compensar amplamente a perda de patrimônio. (Quando as condições de doação são absurdas, há mecanismos legais, nos EUA, que permitem corrigir isso sem perder os recursos doados.)  Por exemplo, alguém doa uma parte de um grande terreno para uma universidade construir uma nova unidade de ensino e pesquisa, o que valoriza a outra parte não doada.

Como, nos EUA, muitas doações a fundos de universidades são consideradas ações de caridade[iv], pode haver, ainda, vantagens tributárias significativas.

 

         Vale a pena ter um fundo patrimonial em uma instituição pública como a USP?

A USP já teve enormes reservas financeiras de livre uso: em 2011, por exemplo, elas atingiram o incrível valor atualizado de 6 bilhões de reais. Relativizando-o pelo tamanho das instituições – número de alunos, de professores e funcionários ou do orçamento – tal fundo é muito maior do que os observados mesmo nas universidades públicas dos EUA. Por exemplo, aqueles recursos correspondem a um ano inteiro de orçamento, enquanto o sistema da Universidade da Califórnia, uma das instituições públicas dos EUA com maior fundo patrimonial (tanto em termos absolutos como relativizado por seu tamanho), tem um fundo correspondente a cerca de terça parte do seu orçamento[v].

Entretanto, a USP não soube utilizar tais recursos de forma adequada e quase conseguiu esgotá-los em poucos anos, sem qualquer contribuição significativa ao desenvolvimento acadêmico da instituição. Atualmente, esse fundo, embora reduzido a cerca da quinta parte do orçamento anual da universidade, ainda é relativamente maior do que existe nas universidades públicas dos EUA e muito maior do que ocorre nos demais países. Há algum plano academicamente justificável para seu destino? Não parece.

A USP também tem uma pequena fonte de recursos externos a seus orçamentos cuja origem é os patrimônios de pessoas que falecem sem deixar herdeiros e sem definir destino a eles, as chamadas heranças vacantes. Tais recursos, existentes por muito tempo, poderiam ter sido usados para a criação de um fundo patrimonial com algum destino bem definido. Não foram.

Finalmente, é bom observar que, no Brasil, diferentemente do que se afirma com frequência, doações têm sido defendidas como formas de captar recursos do setor privado, mas, na prática, examinando as poucas existentes, parecem formas que o setor privado tem de capt(ur)ar a capacidade produtiva da universidade.

Portanto, cabe a pergunta: a USP ou suas unidades devem ter fundos financeiros à disposição?

 

[i] Cerca de 75% das matrículas em graduação nos EUA são em instituições públicas, exatamente o oposto do que ocorre no Brasil, onde cerca de 75% das matrículas são em instituições privadas. Dos estudantes em instituições privadas, apenas uma pequena parte está matriculada em nas universidades ditas de ponta, como Harvard, Stanford, Yale, Duke etc.

[ii] Número de presidentes norte americanos formados por algumas universidades privadas: Harvard, 5; Pensilvânia, 2; Princeton e Yale, um cada.

[iii] Como praticamente todos os impostos diretos, os impostos sobre a renda e sobre heranças têm uma faixa isenta, seguida de faixas de valores crescentes com alíquotas também crescente. No período citado, meados da década de 1930 até 1980, as alíquotas mais altas em ambos os impostos eram da ordem de 80%.

[iv] O artigo de antigo professor de políticas públicas na Universidade da Califórnia em Berkeley, Robert Reich, analisa, com alguma ironia, as caridosas doações feitas por bilionários para instituições muito ricas, como são algumas universidades privadas dos EUA, https://www.salon.com/2013/12/14/the_wealthy_give_to_charity_elite_schools_and_operas_partner/

[v] Fundo patrimonial é dinheiro em caixa enquanto orçamento é dinheiro gasto ao longo de um período. Portanto, a comparação deve ser feita com bastante cuidado.
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