Essa base, não

Marcos Garcia Neira é diretor da Faculdade de Educação (FE) da USP

 19/09/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 11/11/2018 às 21:19

Foto: Marcos Santos / USP Imagens

A homologação, em dezembro último, da Base Nacional Comum Curricular do ensino fundamental (BNCC) e a sua consequente implementação preocupam os profissionais das redes de ensino públicas e privadas pelo país afora. Na prática, isso significa a adequação dos projetos político-pedagógicos de todas as escolas às determinações contidas no documento oficial. É provável que uma grande parcela da população tenha tomado conhecimento do fato através da propaganda financiada pelo Ministério da Educação (MEC), que busca vincular a política educacional em curso à igualdade de oportunidades. Tal como se um currículo comum fosse capaz de neutralizar a diversidade que caracteriza as comunidades escolares e fizesse desaparecer as péssimas condições de trabalho, salários aviltantes, inexistência de planos de carreira, fragilidade nas políticas de formação continuada e inúmeras outras dificuldades que muitos professores e estudantes enfrentam cotidianamente.

Se a alentada padronização curricular não consegue, por si só, alterar o quadro de desigualdade, o leitor deve estar se perguntando por que a BNCC é objeto de tanta discussão. Ora, o que está em disputa é o modelo de cidadão pretendido, aquele que dará sustentação ao projeto de sociedade desejado por alguns. Pontue-se que no campo dos estudos curriculares há um certo consenso acerca da relação entre as experiências proporcionadas pela escola e o processo de constituição das identidades dos sujeitos. Consequentemente, toda e qualquer ação governamental que vise à normatização dos currículos deve ser analisada com profundidade e cautela.

O desejo de produzir uma base curricular não é novidade. A Constituição Federal de 1988 menciona a exigência de fixação de “conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum.” A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996 determina que “os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum”. As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCN) de 2013 explicam que a base nacional comum “constitui-se de conhecimentos, saberes e valores produzidos culturalmente, expressos nas políticas públicas e gerados nas instituições produtoras do conhecimento científico e tecnológico; no mundo do trabalho; no desenvolvimento das linguagens; nas atividades desportivas e corporais; na produção artística; nas formas diversas de exercício da cidadania; e nos movimentos sociais”. Finalmente, o Plano Nacional de Educação (PNE) aprovado em 2014 estipula o prazo de dois anos para “estabelecer e implantar, mediante pactuação interfederativa, diretrizes pedagógicas para a educação básica e a base nacional comum dos currículos, com direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento dos(as) alunos(as) para cada ano do ensino fundamental e médio, respeitada a diversidade regional, estadual e local.”

Para atender às determinações do PNE, em junho de 2015, o MEC instituiu uma comissão de especialistas. Compuseram o grupo mais de uma centena de profissionais, entre professores da Educação Básica representantes de todos os Estados da Federação e pesquisadores vinculados a 35 universidades. Disponibilizada no portal eletrônico para consulta pública em setembro daquele ano, a primeira versão do documento também foi encaminhada a leitores críticos e submetida ao escrutínio de várias associações e entidades científicas. A ideia não era uniformizar o currículo, mas sim estimular estados, municípios e unidades escolares a repensarem e fortalecerem suas propostas, estratégia necessária para enfrentar o assédio promovido por vários setores (empresariado, editoras de livros didáticos, igreja etc.) que, em muitos casos, acabam por corroer propostas locais de cunho democrático.
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A homologação, em dezembro último, da Base Nacional Comum Curricular do ensino fundamental (BNCC) e a sua consequente implementação preocupam os profissionais das redes de ensino públicas e privadas pelo país afora. Na prática, isso significa a adequação dos projetos político-pedagógicos de todas as escolas às determinações contidas no documento oficial.

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O documento preliminar não foi poupado pela imprensa nem tampouco pelo Movimento pela Base Nacional Comum, que publicou um relatório contundente questionando as concepções adotadas, o qual foi assinado por indivíduos e organizações vinculadas à iniciativa privada e ao chamado terceiro setor. É curioso constatar que logo após a entrega da segunda versão com diversas alterações, em abril de 2017, deu-se a mudança de governo e alguns daqueles que chancelaram a manifestação foram chamados a redigir a atual BNCC, com o apoio de suas entidades parceiras.

Apesar das tentativas para passar a impressão que se trata de uma nova versão dos documentos anteriores, a BNCC homologada diverge na função, forma e conteúdo, podendo ser tomada como retrocesso pedagógico e político. O texto do Ensino Fundamental adquire um tom normativo ao reorganizar os ciclos de escolarização inicialmente propostos, alterar o tempo destinado à alfabetização, reduzir o potencial da Língua Estrangeira Moderna aos limites da Língua Inglesa, suprimir o ensino médio e desprezar a indicação do PNE no tocante aos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento (OAD), optando pela definição de competências e habilidades, estas entendidas como “aprendizagens essenciais”.

Desconsiderando a pluralidade de ideias pedagógicas garantida pela LDB e a teorização curricular hoje disponível, o documento desdobra as dez competências gerais em 29 competências específicas por área, 55 competências por componente e arrola exatas 1.303 habilidades a serem fixadas durante o ensino fundamental. É fácil perceber que a vertente assumida pela BNCC negligencia por completo a concepção de base nacional comum explicitada no PNE. Se fosse aceita, o texto seria bem mais enxuto. Restrito, provavelmente, às competências específicas, tomadas como linhas gerais para inspirar os projetos de cada instituição.

A substituição dos OAD por competências e habilidades não pode ser tratada como picuinha ou mera questão semântica. “Objetivos de aprendizagem e desenvolvimento” expressam as intenções docentes no tocante à aprendizagem dos estudantes ao longo da escolarização, tendo como função principal orientar o ensino. Nessa perspectiva, os conteúdos (conhecimentos) adquirem centralidade. Por outro lado, competência é a capacidade de mobilizar recursos para resolver problemas imediatos, e habilidade é a aplicação dessa competência em situações práticas. No formato escolhido pelo documento e tidas como aprendizagens essenciais, as habilidades, quando exercitadas, visam a desenvolver competências, relegando os conteúdos para segundo plano. Além das dúvidas que pairam sobre os critérios empregados para discriminar aprendizagens essenciais para todos os brasileiros, sua pulverização em dezenas de “objetos” provavelmente impelirá os professores a planejarem situações didáticas descontextualizadas e sem nexo.

A literatura educacional recente atrela competências e habilidades a uma formação rápida e superficial que interessa ao mercado. Por sua vez, o alcance dos OAD pode proporcionar solidez, adensar os saberes e fomentar o pensamento crítico. Didaticamente falando, as primeiras se desenvolvem com a resolução de situações-problema artificiais ou não, e os segundos por meio da análise, reflexão e contextualização dos temas abordados nas aulas.
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A substituição dos OAD por competências e habilidades não pode ser tratada como picuinha ou mera questão semântica.

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Do ponto de vista político, cabe alertar que a opção pela pedagogia das competências desviou estrategicamente a BNCC das problemáticas que a sociedade enfrenta. Não que um documento curricular possa saná-las, mas é de se esperar que induza os coletivos docentes a problematizarem, juntamente com os estudantes, os discursos e práticas que reforçam negativamente as diferenças ao invés de valorizar o direito à existência. De modo inverso às duas versões precedentes, o documento homologado silencia a respeito do sexismo, racismo, xenofobia, misoginia e demais formas de preconceito impregnadas no tecido social. Ou seja, a depender da BNCC, as coisas ficarão como estão.

Parece evidente que a política curricular em curso mostra-se simpática a procedimentos homogêneos, avaliações padronizadas e materiais didáticos herméticos. Basta verificar certas obras aprovadas no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) para 2019. Felizmente, algumas redes de ensino já se deram conta das implicações da BNCC e têm aproveitado a fase de implementação para analisá-la, discordar de suas opções e construir propostas mais interessantes com a participação dos gestores, professores e alunos. É possível, afinal, extrair algo de positivo nisso tudo.

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