É a corrupção um mito político?

Tércio Sampaio Ferraz Jr – FD

 15/05/2016 - Publicado há 8 anos     Atualizado: 17/05/2016 as 19:35

“Não mito no sentido de fabulação, mas de componente estrutural de nossa percepção das coisas, que não pode ser eliminado, porque nossa concepção de corrupção não permite sua eliminação”

Tércio Sampaio Ferraz Jr. é professor aposentado da Faculdade de Direito
Tércio Sampaio Ferraz Jr. é professor aposentado da Faculdade de Direito
Embora, nos dias de hoje, corrupção seja um tema corrente, tratado na legislação e verberado moralmente, é possível dizer que talvez não se trate propriamente de um problema jurídico nem mesmo, em sua essência, de um problema ético, mas de um mito político.

Não mito no sentido de fabulação, mas de um componente estrutural de nossa percepção das coisas. Nesse sentido, algo que não pode ser eliminado, não porque o homem seja moralmente fraco, mas porque nossa concepção de corrupção não permite sua eliminação.

Encontra-se aí, aliás, um motivo para voltar-nos para o que se pode chamar de micropolítica enquanto uma técnica política de exercício de poder. Trata-se de instrumento para a exploração de espaços informais na busca de influência, prestígio, reconhecimento, capazes de gerar redes de relações, embora sem mostrar-se diretamente nessas consequências.

O que torna a micropolítica difícil de ser racionalizada (ao contrário da macropolítica e seus instrumento tradicionais: competência, poder de polícia, impositividade legal, uso regulado da força etc.).

Micropolítica explica, nessa linha, os chamados paternalismo e clientelismo, tomados não como distorções da macropolítica, mas como instrumentos necessários ao exercício do poder político ali onde os instrumentos oficiais não dão conta inteiramente de produzir coesão social e governabilidade.

Micropolítica, nesse sentido, não se confunde, de plano, com corrupção, mas tem relação com ela. Pode-se dizer, assim, que o sentido moderno de corrupção tem a ver com um processo histórico de diferenciação e separação, em que micro e macropolítica ganham linhas divisórias, que se tornam barreiras para o exercício do poder.

Nas sociedades pré-modernas uma percepção crítica da corrupção (condenação da corrupção) aparecia quando as expectativas da clientela se frustravam. Entre um cliente e um patrono se estabelecia uma relação de fidelidade/lealdade que, de princípio, era tida como inegociável, isto é, não podia ser comprada.

A percepção da corrupção aparecia, então, quando entrava o dinheiro como uma forma de dádiva (presente), o que acabava por monetizar as relações. Ou seja, o dinheiro corrompia porque tornava obsoletas as máximas fundamentais do clientelismo paternalista: lealdade e fidelidade não se compram.

Nas sociedades pré-modernas uma percepção crítica da corrupção (condenação da corrupção) aparecia quando as expectativas da clientela se frustravam.

Já na sociedade de mercado, a economia capitalista passa a ver no dinheiro o meio hegemônico de qualquer troca, neutralizando os objetos e os sujeitos da troca e pondo as relações micropolíticas sob suspeita.

Em consequência, nos últimos 200 anos, o favorecimento de parentes e agregados vai perdendo sua força cultural na determinação da estrutura social, substituída por uma nova mentalidade: a ação humana movida pelo ganho e pela acumulação, o que exige eficiência (Estado burocrático/racional somado à franca liberdade empresarial) e uma forte diferenciação funcional entre o público e o privado. Nesse novo contexto, o exercício da micropolítica mediante as antigas formas de mecenato nepotista e clientelista torna-se símbolo de reacionarismo, conferindo à crítica à corrupção um sentido modernizador. Mas com isso altera-se o ambiente político-social, pela generalização dos atores e a introdução de um ator novo: as massas (política de massas).

Não obstante, nesse ambiente a micropolítica ganha novos contornos: os antigos mecanismos de oferta de benefícios, enquanto garantia de confiança e lealdade, são transportados para as políticas sociais em forma de instrumentos burocráticos para controle de massas (planejamento administrativo), monetizando-se e recompondo, em formas alternativas, a antiga relação paternalismo/clientelismo.

Com isso cresce, de um lado, o entendimento da política como uma “questão de consciência” de cada cidadão, trazendo como consequência uma crescente integração entre opinião pública e imprensa (opinião pública midiatizada) – o que favorecerá a “crítica à corrupção” em novo sentido – e, de outro, uma progressiva diferenciação entre administração e governo, parlamento e partido, com o surgimento de uma figura até então desconhecida: o político profissional, figura distinta do empresário, e que torna suspeita a confusão dos respectivos papeis.

Escândalos incorporam-se à cena política, pela revelação de segredos inconfessáveis, detalhes picantes de políticos proeminentes, figuras obscuras ligadas a empresários.

Nessa nova dinâmica, corrupção adquire uma nova lógica: se no passado era tema circunscrito a elites sociais, alastra-se a temática para muito além das limitações de classe.

Daí o papel paradoxal da mídia de massas. De uma parte, a mídia provoca a exigência de transparência, politicamente independente e economicamente autossustentável, fundamento da opinião pública. De outra, porém, a escandalização repousa em valorações geradoras de indignação popular, que são, assim, maximizados pela própria mídia.

Daí o dilema democrático: um jogo de realimentação sem precedentes de disputas pro e contra, sob o título de liberdade de imprensa?

E nesse paradoxo reflete-se, afinal, o paradoxo da investigação da corrupção, percebido em instrumentos como o da delação premiada, que repousa, de um lado, na violação de lealdades morais, próprias do micropoder (traição) e, de outro, na plausibilidade de negociação de valores fundamentais como a própria liberdade (cálculo de sobrevivência).

E, no choque entre éticas de convicção e de finalidade, o dinheiro volta a desempenhar um papel fundamental de neutralização moral, tornando a delação algo que se mede pelo preço.

É, de novo, a corrupção moderna, agora como cálculo e objeto de negociação. E aqui a observação histórica nos surpreende, ao mostrar que uma educação cívica, baseada em valores eticamente incontestáveis, quando efetuada em um marco institucional e social inadequado, governado por políticas e políticos corruptos, pode entrar em colapso e fracassar.

Foto: Francisco Emolo/Arquivo Jornal da USP

 

 

 


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