Desinformação e alfabetização midiática – uma parceria necessária

Elizabeth Saad é professora titular sênior da ECA-USP

 16/01/2019 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 25/04/2019 às 11:27

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Elizabeth Saad – Foto: Arquivo pessoal da autora

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As recentes eleições de 2018 no Brasil deixaram uma marca de impacto – as fake news. Notícias falsas passaram a ser o motivo e a justificativa para toda informação e todo ato que representasse o contraditório e o paradoxal de um dado emissor de mensagem.

É real que a produção e a disseminação de notícias falsas sejam um recurso utilizado por diferentes setores, grupos e indivíduos da sociedade com o intuito de criar tendenciamentos e distorções na formação de opinião coletiva ao sabor de interesses específicos. Mas uma fake news representa apenas a ponta de um enorme iceberg calcado num processo de desinformação e de omissão de informação que trafega pelo tecido social, num contexto muito mais amplo e estruturado, alimentando a ação social baseada em dados e fatos incompletos, errôneos e fabricados.

Todo esse processo de manipulação informativa não é novo, não é devido apenas às eleições, não é decorrente apenas da digitalização global e tem suas origens bem lá atrás na civilização, na Antiguidade. O que assistimos agora é uma incrível aceleração de sua disseminação por conta da disponibilidade de meios de informação e comunicação que agregam simultaneamente a mobilidade, a conexão à rede digital e a oferta de plataformas que facilitam a formação de grupos sociais para trocas e interações entre os participantes.

Falamos de um panorama complexo com uma sucessão de componentes que precisam ser entendidos em sua ação conjunta: os fluidos conceitos em torno de fake news/desinformação, a dinâmica das plataformas sociais digitais como operadoras da disseminação informativa, os aspectos socioantropológicos de uma sociedade conectada mas ainda arraigada a preceitos ancestrais, e o papel dos meios de comunicação formais (do jornalismo em especial) e das estruturas educativas como canais fundadores para sustentar a opinião coletiva. Um panorama de vida midiática (media life), parafraseando o pesquisador Mark Deuze.

Por conta da aceleração vigente e do decorrente protagonismo da desinformação mundo afora, diferentes instituições acadêmicas e de pesquisa têm buscado ordenar a diversidade de conceitos que giram em torno das fake news. O Reuters Institute for Journalism, em parceria com a Oxford University, o projeto First Draft, liderado pela pesquisadora Claire Wardle e apoiado por um consórcio de instituições midiáticas, pesquisadores da Unesco, os brasileiros Projor e Projeto Comprova, entre as principais fontes, apesar dos esforços, não apresentam conceitos unificados sobre o tema.

Recorremos à ideia de desordem informativa proposta por Claire Wardle, na qual informações que alimentam a desordem variam num espectro de intenções do falso para o danoso, no qual omissões de informações geram na audiência cognições enganosas; a desinformação leva a conteúdos manipulados ou fabricados propositalmente baseados em falsos contextos; e a informação danosa objetiva o surgimento de discursos de ódio, assédios e vazamentos.

Não por acaso vivenciamos a desordem informativa em nosso ambiente sociopolítico.

Quase sintomático, atribui-se a “culpa” às plataformas sociais digitais como ambientes propícios e facilitadores à promoção da desordem informativa. Não apenas, apesar do impacto que têm Facebook, WhatsApp, YouTube e Twitter, dentre os principais, em nosso cotidiano.

Os números dizem muito. Dados de outubro de 2018 da ComScore indicam que o Brasil, com sua população de quase 211 milhões de cidadãos, é o quinto país em usuários de smartphones, com 43% da população conectada e em mobilidade. YouTube, Facebook, Twitter e WhatApp são as plataformas mais utilizadas, com destaque para o WhatsApp, que teve um crescimento duplicado nos últimos três anos, tendo atualmente quase 100 milhões de usuários no Brasil. Importante ressaltar que o WhatsApp é a plataforma menos transparente em termos de mensuração por sua característica de criptografia das mensagens e de conexão desintermediada entre os participantes.

Temos, portanto, um campo fértil para o surgimento de todo tipo de desordem informativa já que o suporte digital disponível facilita o processo com o uso de propagação algorítmica paga das mensagens, uso de perfis robotizados e alcance amplo à rede.

E por que cidadãos conectados dão mais crédito à informação do parente ou do amigo que participa de seus grupos no WhatsApp do que à informação verificada e credível que circula pelos canais midiáticos e legitimados de uma sociedade?

Aqui poderíamos abrir um enorme leque de discussões uma vez que no mundo midiatizado a noção da liberdade de expressão é alavancada pelas plataformas sociais e pelos serviços digitais. Constituem-se num espaço de autocomunicação do indivíduo para a massa de outros conectados, seja por meio de exposição voluntária da vida privada nos blogs, postagens no Facebook e selfies no Instagram, seja por meio da exposição involuntária de sua identidade e dados, por exemplo, ao preencher um cadastro, ao conectar-se num espaço de comércio eletrônico ou ao usar o internet banking.

Tais ambientes que privilegiam, ao mesmo tempo, uma autorrealização emocional com o ato deliberado de exposição do privado, combinado com a necessidade típica de rapidez e facilitação de serviços oferecida pela rede digital. É mais fácil, rápido e acolhedor saber de uma notícia que é validada por pares similares em cultura e pensamento do grupo de WhatsApp, do que recorrer a uma determinada marca jornalística cujo acesso em mobilidade conectada não é tão instantâneo e nem sempre compactua com as crenças e valores de indivíduos e seu grupo.

Novamente sintomático atribuir a “culpa” aos meios jornalísticos e a outros canais midiáticos que, por não oferecerem a instantaneidade de acesso associada à conexão emocional de pertencimento, acabam num papel de vilania que não lhes cabe.

Não é bem assim!

A imagem do jornalismo e o processo de produção informativa contemporâneos são fatores que precisam ser considerados. O espírito coletivo provocado pelo livre discurso digital de que “qualquer pessoa pode ser um jornalista” oferece meios de propagação informativa que não percorrem o cânone legitimado de apuração, veracidade, precisão e verificação do campo. Estamos diante de uma diferença de ritmos de produção quando a ontologia formal do jornalismo colide com um fluxo digitalizado de informações não comprometidas com precisões, verificações e transparências. Também estamos diante de uma diferença de propósitos e posicionamentos institucionais: de um lado as organizações jornalísticas estruturadas em modelos de negócio rígidos e pouco focadas nos ambientes onde sua audiência trafega – as plataformas sociais; e de outro, websites e redes privadas anônimos criados para espalhar desinformação que não necessitam seguir o processo formal e que se utilizam com destreza das funcionalidades oferecidas pela rede digital para propagação e alcance da audiência.

Diferentes pesquisadores indicam que a propagação de qualquer informação nas plataformas digitais ocorre num formato de ondas. A questão é como elas se originam e evoluem. A ontologia do jornalismo exige um processo longo e estruturado de propagação da notícia, que muitas vezes não inclui o monitoramento de plataformas sociais e de websites da deep web. Até que ela chegue à audiência são necessárias etapas claras e precisas de apuração, verificação, redação, checagem e publicação – uma espécie de onda que vai se avolumando à medida em que a maré sobe. A informação que circula fora desse processo origina-se em ambientes digitais anônimos, grupos fechados ou controlados e comunidades conspiratórias, indo direto para as plataformas sociais digitais, gerando todo tipo de burburinho, numa espécie de tsunami surpreendente.

Diante disso, é importante questionar e agir sobre o papel das instituições sociais legítimas e, em nosso caso, sobre o papel do campo jornalístico – seja representado pelas organizações midiáticas, seja pela pesquisa e formação acadêmica que sustentam o campo.

Se tivéssemos que traduzir caminhos num único termo seria a media literacy – a alfabetização ou literacia midiática. Em todos os níveis, da educação básica às redações jornalísticas, passando por diversos outros grupos sociais, pois a evolução das possibilidades de interação, conexão e comunicação digitais ocorre num ritmo próprio e não paralelo aos processos formais de educação e de trabalho, tais possibilidades criam, também, um status de liberdade de expressão que ultrapassa a discussão sobre quem produz informação e ruma para quem tem acesso e controle da informação nas sociedades.

Temos por posição que educação e treinamento em fluxo contínuo são formas que podem aproximar as diferenças que hoje presenciamos – níveis de cognição, de acesso e uso de funcionalidades digitais, pensamento crítico e reflexivo, e de engajamento cidadão.

Ainda há muito por fazer.

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