Agora, falando sério, qual ciência aberta pode ser tão generosamente exposta ao vento. Todas? Qualquer avanço? Qualquer código? De acordo com esse texto o Comitê de Ética é que definirá quanto e qual será aberta: “No contexto da Ciência Aberta, aos comitês de ética caberá também a orientação sobre quais tipos de dados devem ou não ser abertos”.
Não há nenhuma dúvida de que várias modalidades de ciência aberta são importantíssimas para o desenvolvimento e democratização do bem-estar nas diversas sociedades que formam o planeta azul: “Cursos de capacitação, websites, fóruns etc. orientados a pesquisadores e outros atores”, compartilhamento de dados epidemiológicos, climáticos etc. No texto citado acima, os autores concordam que “em casos justificados de preservação de privacidade e necessidade de sigilo temporário ou definitivo os dados não são abertos”, mas deixa bem incompleto e sem detalhes esse cuidado.
Há pesquisas que devem ser abertas de forma ampla, geral e irrestrita (por exemplo, mapeamento genético do vírus da covid), mas há pesquisas que não devem em hipótese alguma serem abertas (por exemplo, pesquisa com enorme potencial econômico). Não é uma questão ética, é a inexorável competição científica e tecnológica que todas as nações estão travando. As nações estão em intensa competição em algumas áreas. Áreas que gerarão empregos e renda para milhões de novos pesquisadores, engenheiros, programadores etc. etc.
Obviamente, os países que já se desenvolveram querem ciência amplamente aberta. Aqui cabe uma digressão machadiana: nós, brasileiros, usamos dados, fatos e circunstâncias europeias, americanas e tantas outras desfocadas da realidade brasileira. Não custa lembrar: estamos no Brasil. País de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, 215 milhões de habitantes, país exportador de commodities há séculos, importador de produtos de alto valor agregado. País que gera pouca vaga boa para nossos alunos. Poucas vagas para doutores e “o salário óóóó” (como dizia o personagem de Chico Anysio).
Mesmo num cenário tão tupiniquim, insistem em pensar nas formulações dos países desenvolvidos para decidir o que é melhor para o Brasil?
Eles têm toda uma estrutura pronta para traduzir avanços científicos e tecnológicos em produtos, novos empregos, novas empresas. Não é o nosso caso. Em alguns, poucos, setores temos essa potencialidade (em certa medida, em alguns ramos do agronegócio). Mas, na maioria não. A pandemia mostrou essa fraqueza aberta, escancarada.
Entre a bancada e o microscópio há muitos passos e atores que uma nação precisa ter para endogenizar o desenvolvimento científico e tecnológico. Ter bons amigos em universidades internacionais, trocar e-mails, tomar chá e degustar canapés em eventos não é internacionalização. Internacionalizar-se é ter condições similares de desenvolver-se, trocando de igual para igual conhecimentos, fazendo pesquisas compartilhadas e, sobretudo, beneficiando-se, na justa medida, dos ganhos que P&D gera para o nosso desenvolvimento. P&D é um braço do desenvolvimento justo e equitativo de uma sociedade.
Temos uma incompletude estrutural entre mundo econômico e P&D.
Ou pensamos de forma sistêmica muito bem articulada e estrategicamente formulada ou o passado será nosso eterno futuro.
Ao invés de Comitê de Ética, as universidades precisam de um Comitê de Estratégia Econômica (CEE). Algumas pesquisas precisam de cuidadoso e profissional assessoramento jurídico, intensos mecanismos de confidencialidade, foco em resultados, gestão precisa de projetos e insumos e, inevitavelmente, um novo regramento que ofereça aos pesquisadores, alunos e universidade uma justa participação acionária nos desenvolvimentos feitos.
A universidade tem inegociáveis compromissos sociais que exigirão compartilhamento de dados e resultados. Mas é uma fonte geradora de crescimento econômico de alto valor agregado em vários casos. Sabedoria é saber distinguir essa fronteira entre o bem comum e a necessidade de crescer e desenvolver-se. Vamos deixar de lado as sinecuras acadêmicas (sinecure académique).
Para semente virar árvore há muitas condições e cuidados. A semente tem poucos gramas, as árvores têm toneladas. São as árvores que geram frutos e muita madeira. Há uma trajetória complexa, cheia de processos interligados, de condições de contornos transfiguradas pelas condições iniciais, há a necessidade de fluxo temporal de insumos e trâmites administrativos para que os processos científicos e tecnológicos transformem sementes em árvores. A universidade semeia, mas a sociedade precisa de árvores.
A universidade deve, para justificar sua existência, instigar ou provocar essas condições. Devemos formular uma visão estratégica nacional focada em resultados concretos, com prazos, orçamentos, direitos e obrigações das partes envolvidas.
A Pollyanna tinha o “jogo do contente”. Era um mecanismo escamoteador criativo para apaziguar os desejos e necessidades frustradas. Por exemplo: “Nunca pode saborear um pudim delicioso, tudo bem! Fique no jardim sentindo a relva. Não se entristeça, curta as suas limitações e as oportunidades que elas geram. E abdique do que não pode ter”.
Adapto o jogo do contente para o tema ciência aberta: a universidade não pensa nas malícias naturais da competição científica e tecnológica mundial? Tudo bem! Vamos compartilhar tudo para o Zuckerberg ficar mais bilionário. A empresa dele terá muitas vagas para engenheiros, programadores, pesquisadores. Terá capital para novas tecnologias. Afinal, a sociedade americana também é sociedade. Eles merecem bons empregos e boa renda. Fiquemos com nossa renda per capita ínfima, fiquemos exportando minério de ferro e vamos nos contentar com artigos para inserir no Lattes. Todos contentes na nossa maldição da renda baixa, no eterno país exportador de commodities. Acatemos o pouco que podemos alcançar e sigamos o jogo do contente.
Vamos louvar nossas limitações e as excelentes oportunidades que elas criam, ao invés de saborear deliciosos pudins, vamos curtir o telúrico perfume dos gramados.
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