O estrago da anistia eleitoral (PEC 9/23) vai além de mulheres e negros

Por Maria Paula Dallari Bucci, professora da Faculdade de Direito (FD) da USP

 26/05/2023 - Publicado há 1 ano

O estrago proporcionado pela anistia eleitoral de que trata a PEC 9/23 (link) é maior do que o percebido. Ela vai além das cotas de gênero e raça, agravando o enfraquecimento da legislação eleitoral, já debilitada pelas anistias eleitorais anteriores. Como a PEC será submetida à apreciação de mérito, ainda é possível engrossar a mobilização da opinião pública para inibir seus autores.

Tudo nela é lambança; é um texto curto e grosso, que vale ler diretamente.

O artigo 1º altera a Emenda Constitucional n. 117/2022, de maneira avulsa, sem se integrar ao texto constitucional. Assim, a Constituição Federal, escrita para conhecimento de todos, vai sendo agregada de “puxadinhos”, regras escondidas para uso dos interessados. Não é a primeira a fazer isso; a EC 117 já tinha adotado essa técnica, a demonstrar que a degradação democrática se expressa também no campo jurídico formal. Essa emenda, vale lembrar, é a que aprovou a anistia anterior, em abril de 2022.

A PEC 9/23 altera o artigo 3º da EC 117 para excluir qualquer tipo de sanção pela não destinação dos valores mínimos a candidaturas de mulheres e negros nas eleições de 2022 e anteriores. Isso significa negar mais uma vez a representação dessas maiorias populacionais (respectivamente, 51,1% e 56,1% da população), que as regras políticas transformam em minorias (18,2 e 24,6% das cadeiras na Câmara Federal, respectivamente).

O art. 4º também exclui sanções nas prestações de contas relativas a exercícios anteriores à promulgação da Emenda, na prática estendendo o perdão que havia sido estabelecido na anistia anterior, com término em 2022. O mais surpreendente é a justificativa da PEC, baseada na “segurança jurídica”!

Por fim, o art. 5º cria uma exceção à proibição do financiamento empresarial de campanhas para permitir que a quitação de dívidas partidárias anteriores a 2015 possa ser paga com recursos de pessoa jurídica. Essa disposição elimina um dos efeitos inegavelmente positivos da decisão do STF, que foi simplificar o controle sobre o financiamento eleitoral. Exigências baseadas em regras rebuscadas são difíceis de controlar, porque sempre é possível invocar circunstâncias especiais a motivar tratamento excepcional. A vedação ao financiamento empresarial simplificou o controle do caixa 2, o que em tese minimizaria a corrupção turbinada pelas empresas financiadoras com contrapartida em benefícios prestados por governantes ou parlamentares eleitos.

Essa mudança ocasionou a criação do fundo eleitoral (Fundo Especial de Financiamento de Campanha), que em 2022 teve o valor de R$ 4,9 bilhões. A PEC 9/23 trará de volta o financiamento empresarial, sem nenhuma justificativa consistente. E mesmo que o uso seja limitado à quitação de dívidas antigas, seu efeito pode desorganizar o controle de qualquer prestação de contas; sempre se poderá alegar o peso de débitos anteriores. Além disso, como se percebe, as anistias eleitorais têm uma dinâmica incremental. Assim como a de 2023 se apoia sobre a de 2022, se essa lógica não for quebrada é de se esperar que em cima da atual venha uma nova, possivelmente incorporando e expandindo o financiamento empresarial. Evidentemente, sem redução do fundo eleitoral.

As anistias eleitorais infelizmente não são novas; são apenas uma faceta de nossas leis que “não pegam”. Mas a circunstância atual é mais grave, pois está em jogo a sobrevivência da democracia. O extremismo político (que não é exatamente polarização, porque só o que está polarizado é a extrema direita; não há movimento equivalente no outro lado do espectro político) se caracteriza exatamente pelo desprezo às regras democráticas, dentre elas o valor intrínseco da competição eleitoral e da aceitação do resultado pela parte derrotada. Da quebra dessas regras ou de sua corrosão por dentro do sistema é que brotam as “democracias iliberais”.

Os pilares das democracias liberais foram estabelecidos à custa de muita luta política. No contexto da Revolução Gloriosa, de 1688, quando o Parlamento passou a ocupar o centro do liberalismo inglês, John Locke descreveu a representação política, alertando que “não convém que as mesmas pessoas que detêm o poder de legislar tenham também em suas mãos o poder de executar as leis, pois elas poderiam se isentar da obediência das leis que fizeram e adequar a lei à sua vontade (Segundo Tratado sobre o Governo Civil, § 143). Para Locke, assim como para nós, a lei feita nessas condições teria “interesses distintos daqueles do resto da comunidade, contrários à finalidade da sociedade”.

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