Atualmente, é comum vermos em bares, restaurantes, festas e em locais públicos casais ou grupo de amigos fixados em seus celulares, teclando, conversando pelos aplicativos, trazendo para o papo grupo de pessoas espalhadas geograficamente, criando convívios virtuais.
Não vou fazer análises das implicações socioculturais desses novos hábitos de convivência e entretenimento. Deixo isso para os especialistas das áreas de educação e humanidades que, ultimamente, têm se debruçado amplamente sobre tentativas de entendimento dos fenômenos originários da rapidez e da facilidade das comunicações.
Prefiro falar um pouco das origens do desenvolvimento científico e tecnológico do que hoje se denomina mundo digital, tentando entendê-lo como uma forma de representação dos fenômenos da natureza, na forma de entes binários que combinam zeros e uns, formando os chamados bits de informação.
Em um primeiro passeio sobre o assunto, destaca-se a contribuição de Claude Elwood Shannon (1916-2001), considerado o pioneiro na formulação da chamada Teoria da Informação. A leitura do livro de Jimmy Soni e Rob Goodman, A mind at play: How Claude Shannon invented the information age é muito agradável e ilustrativa, desvendando formas de pensamento que levaram à concepção de algumas maravilhas tecnológicas criadas pela espécie humana.
Convido aqueles que, boquiabertos, contemplam aplicativos de inteligência artificial e ligam e desligam aparelhos conversando com máquinas pensem sobre as mentes iluminadas que construíram essa história. Claro que na ciência e na tecnologia há muitas pessoas que realizam trabalhos de valor e que são os importantes ombros sobre os quais o desenvolvimento acontece.
Tentando identificar um ombro de gigante para as ideias de Shannon, constato que, por volta de 1876, o físico William Thomson (Lorde Kelvin – 1824-1907) propôs a construção de uma máquina, usando dispositivos mecânicos e uma caneta que, associada ao movimento das peças, representava graficamente o comportamento dinâmico de fenômenos físicos descritos de acordo com equações diferenciais.
Colocando como entradas as forças gravitacionais do Sol e da Lua e como parâmetros os perfis de relevo, o comportamento das marés podia ser previsto. O princípio de funcionamento da invenção de Lorde Kelvin era fundamentado nas leis de Newton, a partir das quais equações diferenciais eram dedutíveis e podiam ser simuladas por engenhocas construídas em oficinas mecânicas.
Neste ponto quero fazer duas digressões: o título nobiliárquico atribuído a William Thomson se deve ao Rio Kelvin, situado na região Norte da Escócia, próximo ao seu laboratório e a máquina por ele concebida é a origem do computador analógico, usado em simulações em laboratórios até os anos 1970.
É comum as pessoas confundirem computador analógico com os grandes computadores digitais, ENIAC (Electronic Numerical Integrator And Computer) por exemplo, construídos com circuitos analógicos, mas que operavam digitalmente. Por computador analógico entende-se um dispositivo eletromecânico cujo comportamento dinâmico segue equações diferenciais.
Esse tipo de máquina, na primeira guerra mundial, foi utilizado pela armada britânica na batalha naval de Jutland, em 1916, para localizar alvos inimigos. Nessa ocasião, seu uso não foi bem-sucedido, dada a sua pouca versatilidade diante de variações de perfis e dificuldade de realizar as operações do cálculo integral com rapidez.
Hannibal Ford (1877-1955), inventor nova-iorquino, em 1917, antes do uso corrente de circuitos eletrônicos, aprimorou a máquina de Lorde Kelvin, construindo um integrador mecânico (Baby Ford) que realizava as operações utilizando dois rolamentos esféricos sobre um disco plano giratório. A distância entre os rolamentos e o centro do disco dava o formato da curva a ser integrada e a velocidade dos rolamentos, a solução da equação.
Nesse contexto, Vannevar Bush (1890-1974), engenheiro americano de relevante atuação na pesquisa científica, trabalhando no Massachusetts Institute of Technology (MIT) e chefiando o Departamento de Engenharia Elétrica, em 1918 concebeu um traçador de gráficos que, em conjunto com a máquina de Ford, permitia a simulação dos diversos fenômenos naturais.
A combinação Kelvin, Ford e Bush permitiu a construção da máquina, viabilizada em 1924, que colocava comportamentos dinâmicos de maçãs caindo, marés, redes de distribuição de energia elétrica reduzidos a sua essência, isto é, a equações diferenciais com soluções obtidas em poucas horas, em uma sala do edifício do departamento de engenharia.
Em 1928, uma máquina de múltiplos propósitos, denominada Differential Analyser, aclamada na época como “cérebro em uma sala”, foi colocada em operação, permitindo estudar fenômenos físicos como influência do campo magnético da Terra nos raios cósmicos, espalhamento de elétrons, além dos inicialmente concebidos como marés e sistemas de distribuição de energia.
Entretanto, cada aplicação exigia ajustes trabalhosos e, ao final de cada tarefa, uma delicada manutenção precisava ser realizada.
Em 1935, Shannon chegou ao MIT para trabalhar sob a supervisão de Bush, quando a operação do Differential Analyser havia atingido os limites do uso operacional. Bush pensou em criar um dispositivo capaz de facilitar a mudança de aplicação do uso da máquina de maneira automática, problema que Shannon resolveu, aplicando os conceitos de álgebra booleana (George Boole – 1815-1864) pela primeira vez em problemas práticos de engenharia.
Assim, com genialidades e ousadias combinadas, ações comandadas por sistemas binários, chaves que abrem e fecham, começaram a mudar os métodos de fazer ciência e de computar ou calcular.
Sistemas de coleta e processamento de informação foram colocados no mesmo contexto matemático e, com a miniaturização da eletrônica, trouxeram as marés de Lorde Kelvin, satélites, foguetes, meios de transporte, transmissão de conhecimento, livros, telefonia, rádio, televisão, cirurgias assistidas por computador, internet e até conversas de boteco, das salas dos laboratórios para a vida diária.
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