O julgamento de Bolsonaro pelo TSE

Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP

 30/06/2023 - Publicado há 10 meses

A decisão do Tribunal Superior Eleitoral de tornar inelegível o ex-presidente Jair Bolsonaro por abuso de poder político já era esperada, fato esse confirmado pelo modo como ele reagiu à condenação. Em vez de apresentar argumentos jurídicos consistentes e provas materiais de que seus julgadores teriam exorbitado, ele se limitou a repetir o que sempre fez: desqualificar moralmente os ministros, afrontar a corte, desqualificar as instituições democráticas e chamar de “analfabetos políticos” operadores jurídicos, políticos e jornalistas que dizem que os atos antidemocráticos de 8 de janeiro foram uma tentativa de golpe.

De certo modo, Bolsonaro reproduziu, em suas acusações ao TSE, o que disse em sua absurda fala aos embaixadores, em julho de 2022, quando acusou o sistema eleitoral brasileiro de estar viciado. Além disso, ao chamar a corte de contraditória, não apenas misturou fatos que não se conectavam, como também, a pretexto de acusar os ministros de terem sido contraditórios, invocou decisões anteriores que nada tinham a ver tecnicamente com seu caso. Por fim, voltou a assumir a imagem de mártir, quando lembrou a facada que recebeu durante a campanha eleitoral em 2018.

Ao promover essa pantomina, o ex-presidente e suas milícias digitais esqueceram-se de um dado elementar: o fato de que, em um regime democrático relativamente consolidado, como o brasileiro, operadores jurídicos encarregados de garantir a segurança jurídica e o império da lei – como promotores e magistrados eleitorais – sempre tendem a ser mais inteligentes, engenhosos e eficientes de quem viola a legislação eleitoral e descumpre a ordem jurídica em vigor.

Os ministros do TSE que o condenaram, por sua vez, nada mais fizeram do que os calouros de direito aprendem no primeiro semestre dos cursos jurídicos. Ou seja, que a interpretação de um texto legal por um tribunal superior é sempre um problema dotado de complexidade técnica e não uma simples questão matemática ou de natureza lógico-formal. Como já dizia o jurista americano Oliver Wendel Holmes Jr., que presidiu a Suprema Corte e foi professor da Harvard University na transição do século 19 para o século 21, uma interpretação judicial não é um ato meramente técnico, lógico e mecânico, na qual as convicções doutrinárias do intérprete da Constituição e seus valores morais não fazem a menor diferença. Aliás, o ministro do STF que mais tem consciência do que dizia Holmes é um dos que mais foi afrontado por Bolsonaro, quando presidiu o próprio TSE.

Trata-se de Luís Roberto Barroso. Quando foi sabatinado pelo Senado, ele tocou justamente em um ponto que marcou o julgamento que tornou Bolsonaro inelegível. “Viver é equilibrar-se em uma corda bamba, fazendo escolhas a cada passo. Por vezes, alguém da plateia pode achar que o equilibrista está voando. Não há muito problema nisso, porque a vida é feita de ilusões. Mas o equilibrista tem de saber que está se equilibrando, porque se achar que está voando, cai.” Na prática, o que ele quis dizer é que, por mais complexa que seja uma decisão de um tribunal superior, como é o caso do TSE ou do próprio Supremo Tribunal Federal, essas cortes têm de ser “deferentes” tanto para o que dizem os textos legais quanto para a própria realidade dos fatos. E, no caso de Bolsonaro, não se pode esquecer um desses fatos – as ameaças feitas, tanto nos últimos anos quanto no 8 de janeiro de 2023, à integridade física dos ministros do STF. Não por acaso suas instalações foram as mais atacadas pelos criminosos bolsonaristas na tentativa de golpe de Estado.

Entre os bolsonaristas menos estúpidos, há quem tenha dito que o TSE poderia ter sido menos rigoroso no julgamento. Contudo, eles se esqueceram de pelo menos dois pontos. Em primeiro lugar, não levaram em conta o efeito cumulativo das ameaças à democracia e às instituições encarregadas de defendê-la feitas por Bolsonaro quando esteve no poder, entre janeiro de 2019 e dezembro de 2022. Em segundo lugar, o fato de que as ameaças violentas e recorrentes a essas instituições são tipificadas como crime pelos artigos 359-L e 359-M do Código Penal, que tratam da abolição violenta do Estado de Direito e de golpe de Estado, respectivamente.

Em outras palavras, a decisão do TSE foi apenas a primeira que poderá deter em caráter definitivo o projeto autocrático de Bolsonaro e de seu medíocre entorno familiar e militar. Ele não está imune a outras condenações ainda mais duras do que a pena de inelegibilidade por oito anos. E, como em política não há vácuo, por mais que ele se vitimize e passe a se apresentar como um puxador de votos, nada garante que não seja suplantado por gente que só ascendeu ao proscênio por tê-lo apoiado no pleito de 2018 e ao longo de seu governo.

O problema é que, dada a toxicidade de um político inepto, tosco e amoral como Bolsonaro, essa gente – principalmente os mais moderados e com um mínimo de massa cinzenta – poderá tomar seu espaço. Às vésperas do julgamento, o ex-presidente afirmou que não teria medo de recomeçar a carreira política se candidatando a vereador, em 2024. À primeira vista, parecia blague. Para os analistas mais antigos da vida política brasileira, a fala foi interpretada como o reconhecimento de que seu mundo caiu.

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