O bolsonarismo de volta às ruas

Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP

 13/03/2024 - Publicado há 10 meses

Ao mostrar a volta do bolsonarismo às ruas, os jornais lembraram que 40% do eleitorado conservador brasileiro continua acreditando que a eleição presidencial de 2022 foi manipulada e que a principal corte do País, o Supremo Tribunal Federal, vem extrapolando sua atuação ao cercear direitos individuais e aplicar severas punições a “patriotas”. Esse segmento do eleitorado também vem pedindo ao Congresso que restrinja as prerrogativas do Poder Judiciário e que afaste os juízes “ativistas”.

Com isso, o debate sobre o protagonismo da magistratura voltou – e, como no passado recente, fundado no desconhecimento quase absoluto do funcionamento das instituições judiciais e do próprio Estado de Direito. Em primeiro lugar, esse pessoal se esquece de que a crescente atuação da cúpula do Judiciário aumentou significativamente após a promulgação da Constituição.

Em vigor desde outubro de 1988, ela colocou o STF no centro da vida política brasileira ao ampliar significativamente as funções do Ministério Público Federal, inclusive para além da esfera penal. Também determinou a criação de Defensorias Públicas em cada unidade da Federação e da Defensoria Pública da União, propiciando o acesso aos tribunais de pessoas que não dispunham de condições materiais para defender seus interesses e direitos. Permitiu, ainda, que partidos, associações nacionais e entidades como a OAB propusessem ações de constitucionalidade, o que até então era prerrogativa do procurador-geral da República. Esses novos instrumentos processuais incluem ações diretas de inconstitucionalidade, ações declaratórias de constitucionalidade, ações diretas de inconstitucionalidade por omissão e arguições de descumprimento de preceito fundamental.

Concebidas para fortalecer a democracia após duas décadas de ditadura militar, esses instrumentos processuais abriram caminho para a multiplicação de reivindicações por justiça substantiva e reconhecimento de direitos por grupos minoritários e identitários, causando desse modo uma sobrecarga quantitativa nas diferentes instâncias judiciais – inclusive no Supremo. Só nas duas primeiras décadas após a promulgação da Constituição, foram propostas perante o STF mais de 4 mil ações diretas de inconstitucionalidade. Entre 1990 e 2012, o número de novos processos ajuizados na primeira instância das Justiças Estaduais, da Justiça Federal e da Justiça trabalhista passou de 5,1 milhões para 28,2 milhões.

Sem entender o alcance das conquistas institucionais após a redemocratização do País, expressas pelo que muitos juristas chamam de hiperconstitucionalização da vida brasileira, esse segmento do eleitorado conservador banalizou a expressão “ativismo”. Desprezou, assim, o fato de que, em vez de usurpar poderes, os tribunais nada mais fizeram do que responder às demandas da sociedade e de que as diferentes instâncias da magistratura apenas cumpriram suas funções judicantes.

Outro ponto não compreendido pelos 40% dos eleitores conservadores decorre de sua incompreensão da estratégia utilizada pela Assembleia Constituinte para definir as normas estruturantes, reguladoras e disciplinadoras de uma sociedade complexa, desigual e cambiante, como a brasileira. Independentemente de suas divergências partidárias e ideológicas, os constituintes decidiram que, nos casos em que houvesse consenso e que envolvessem práticas sociais homogêneas e expectativas comuns por parte da sociedade, a norma constitucional teria a forma de regras. Já no que não fosse passível de consenso e não tivesse por base costumes, rotinas e comportamentos sedimentos na sociedade, as normas constitucionais teriam a forma de normas principiológicas.

A diferença entre esses dois tipos de normas é de caráter lógico. Por se expressarem por meio de conceitos objetivos e precisos, as regras têm um campo de abrangência limitado e um número definido de hipóteses em que podem ser aplicadas. Na prática, isso significa que elas são aplicáveis na base do tudo ou nada. Diante dos fatos que uma regra estipula, ela ou se aplica (e, portanto, suas determinações têm de ser seguidas) ou, então, não se aplica (por ser inválida). Já os princípios, por se expressarem por meio de conceitos mais indeterminados, polissêmicos e com conteúdo moral, como “função social da propriedade”, “dignidade do homem livre” e “moralidade pública”, têm um campo indefinido de hipóteses. Dito de outro modo, se um campo de abrangência é maior do que o das regras, exige uma interpretação “ponderadora” por parte da magistratura.

Como são mais maleáveis ou dúcteis do que as regras, os princípios contribuem assim para que juízes, desembargadores e ministros possam tomar decisões que equilibrem estabilidade e mudança na vida social. Seus conceitos polissêmicos ajudam a lei a permanecer estável, ao mesmo tempo em que permitem que os intérpretes a acomodem às novas situações. No âmbito de uma sociedade desigual e cambiante como a nossa, os princípios apontam caminhos. Propiciam o ajuste das decisões tomadas pelos magistrados com relação às especificidades de cada caso concreto ao contexto socioeconômico, político e cultural que o circunscreve.

Normatividade dos princípios e técnicas hermenêuticas e sua contribuição para uma atividade mais intensa do Poder Judiciário são pontos das disciplinas de Teoria do Estado e de Introdução ao Direito e Teoria do Estado, ensinadas no primeiro ano dos cursos jurídicos. Na primeira, os calouros aprendem as teorias de legitimação da jurisdição constitucional em regimes democráticos. Na segunda, aprendem que, quando os princípios se chocam, juízes de primeira instância, desembargadores e ministros dos tribunais superiores têm de levar em conta a força relativa de cada princípio. Ou seja, têm de fazer o que os juristas chamam de ponderação – um balanceamento de valores. Ainda que alguns possam exorbitar, valendo-se desse aumento de discricionariedade para tentar no futuro ingressar na vida política e disputar um mandato parlamentar, a magistratura brasileira, em sua maioria esmagadora, agiu de modo consequente e responsável.

Como se vê, princípios – como o da probidade administrativa no exercício de uma função pública, por exemplo – implicam uma abertura para valores de ordem moral, da parte dos magistrados que têm de aplicá-los a cada caso específico sob sua responsabilidade. Com base nos chamados estudos de judicial politics, sucessivas gerações de sociólogos do direito já mostraram que, quanto mais complexa é uma sociedade, menos ela conseguiria ser disciplinada por regras precisas. Foi justamente o desconhecimento técnico do eleitorado conservador da distinção entre regras e princípios que os levou a confundir normas principiológicas com valores ideológicos. Foi isso que deu uma suposta “base” aos segmentos mais obtusos do eleitorado conservador e das corporações militares simpatizantes ao bolsonarismo para defenderem uma medida absurda: a redução das prerrogativas do Judiciário, em nome da “preservação da democracia”.

Por isso, ainda que desta vez tenha sido comedido em termos retóricos, o retorno do bolsonarismo às ruas ficou muito longe de uma festa cívica. Foi mais do mesmo, evidenciando a ignorância e o despreparo do movimento político que tentou um golpe contra o Estado de Direito sob o pretexto de… defender a liberdade e a democracia.

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