Uma personagem presunçosa: Morte na Rua Hickory, de Agatha Christie

Por Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 04/01/2024 - Publicado há 11 meses

[…] a maioria dos estudantes já estava sentada quando a Sra. Hubbard desceu de seus aposentos seguida por um senhor baixo, já idoso, com duvidosos cabelos pretos e
um bigode de dimensões absurdas, em que fazia floreios com satisfação.
(Morte na Rua Hickory, cap. IV)

Na maioria dos romances policiais de Agatha Christie, duas costumam ser as motivações que induzem seus narradores e personagens a cometer crimes:

(1) o fator pecuniário e
(2) o elemento passional.

Nos atos torpes relacionados ao primeiro tipo, incluem-se disputas por herança, pedidos de empréstimos malsucedidos, lucros interrompidos e chantagens. Na segunda categoria estão o receio do assassino ter a verdadeira identidade reconhecida pelas autoridades; a reação descompensada como fruto do ciúme; a interdição de um desejo intenso. É curioso que, na produção da autora, os crimes da segunda categoria sejam mais raros que os relativos à primeira.

Particularmente em Morte na Rua Hickory (publicado originalmente como Hickory, Dickory, Dock em 1955), parece haver uma combinação de ambas as motivações, pois a investigação revela tanto aspectos financeiros quanto elementos de natureza psicológica e emocional. O enredo transcorre a maior parte do tempo no interior da moradia que ocupa os números 24 e 26 da Rua Hickory. Trata-se de uma pensão para estudantes onde passam a acontecer furtos de objetos variados, mas também gestos de maior violência, como uma mochila ser feita em pedaços.

Desde as páginas iniciais, a personagem que mais chama atenção é Nigel Chapman, descrito pela narradora e pelas demais personagens como um sujeito impertinente e infantil, que costumava desafiar o bom senso e se especializara em recriminar os outros hóspedes. Um dos capítulos mais significativos é o décimo, situado aproximadamente na metade do livro. Durante a entrevista conduzida pelo inspetor Sharpe, Nigel se esquiva das perguntas, calando defeitos e afetando virtudes que não possui.

Dito em outras palavras, ele é capaz de simular qualidades e dissimular defeitos, ou seja, afetar racionalidade e esconder o que de fato sente. O contraponto de Nigel Chapman é Sally Finch, a primeira dentre as pessoas interrogadas a sugerir que o assassinato da colega Celia Austin teria sido induzido pelo fato de ela saber algo impublicável sobre alguém que coabitava a pensão.

O individualismo dos estudantes, combinado ao contraste que há entre eles, sugere que em Morte na Rua Hickory não é tanto a energia e a vitalidade dos jovens que deveríamos levar em conta, mas a falta de solidariedade entre seres que dividem a moradia. Nesse romance de Madame Christie, o estudo sobre essas complexas e variadas personalidades importa tanto ou mais que a resolução dos crimes por Hercule Poirot.

Talvez o único ponto em comum aos pensionistas seja o fato de a postura narcísica e perversa do assassino contaminar a atmosfera do lugar, submetendo todas as personagens a um regime de terror.
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