Hercule Poirot ocupa quase a metade dos romances policiais escritos por Agatha Christie (1890-1976). Haverá quem o considere excessivamente caricato, devido a seus atributos físicos e psicológicos, também por conta de seus trejeitos mais ou menos situados entre a polidez e a arrogância. Independentemente do que os leitores captam ou sentem em relação ao homenzinho belga, deve-se recordar que o detetive é um legítimo herdeiro de Sherlock Holmes, de Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930). Agatha Christie admitiu-o diversas vezes, como também revela sua Autobiografia, publicada em 1977 (ou seja, um ano após sua morte).
Assim como Holmes, Poirot demonstra extraordinária capacidade de raciocinar e reconstituir cenas que explicam o método empregado por um(a) personagem criminosa. Mas o investigador belga tem uma vantagem sobre o detetive inglês: ele não se limita a procurar pegadas, digitais ou provas forenses. Em diversas ocasiões, Hercule Poirot ressalta que é possível descobrir a motivação dos suspeitos levando em conta também os aspectos psicológicos. É o que acontece, por exemplo, quando ele examina o local onde determinadas personagens moram ou trabalham.
Em numerosas ocasiões, traços da personalidade são revelados, mediante exame meticuloso do ambiente que circunda determinadas figuras.
Esse dado é curioso, pois, além de permear a estrutura e o teor dos romances, permite situar as narrativas de Agatha Christie no tempo em que ela viveu. Levando-se em conta que sua obra policial de estreia (O Misterioso Caso de Styles) foi escrita em 1916 e publicada somente quatro anos depois – após ser recusada por algumas editoras –, chama a atenção o vasto conhecimento da escritora sobre os efeitos de variadas substâncias (devido à sua experiência com farmacologia, durante a Primeira Guerra Mundial). Além disso, o diálogo entre suas personagens demonstra que a autora acompanhava com interesse as novidades da medicina, bem como os estudos sobre psiquiatria e psicologia, em particular os ensaios de Sigmund Freud (1856-1939).
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Num manual sumamente didático, porém esquecido (Análise Literária, traduzido no Brasil em 1968), o argentino Raúl Castagnino explicava, com notável objetividade e clareza, o que define a personagem e seu caráter: “Persona (ae) era a máscara de madeira usada pelos atores gregos nos amplos cenários ao ar livre; aumentava-lhes a figura, magnificava-lhes a voz (ideia esta última expressa em latim pelo verbo persono). Por transporte semântico, depois a palavra designou a configuração externa do ser, o contorno, o físico, o material. Por outro lado, caráter denotou o traçado interno, o interior, o moral, o espiritual, segundo surge do capítulo XV da Poética aristotélica”.
Esse conhecimento nos interessa de perto já que parte essencial da caracterização de Hercule Poirot está nas coisas que ele diz e naquilo que os narradores (ou outras personagens) afirmam a seu respeito. O leitor familiarizado com os romances de Agatha Christie deve se recordar de que as falas do detetive são frequentemente pontuadas por expressões em francês – utilizadas para transmitir conformidade, surpresa, indignação etc. Ora, é justamente esse traço peculiar da personagem que deixou de ser observado em algumas traduções feitas mais recentemente no Brasil.
Entre as décadas de 1960 e 2000, havia o cuidado de se preservar os termos e frases em francês (apresentando-se sua tradução em notas de rodapé), como se verifica em edições bem cuidadas publicadas em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. Infelizmente, há versões recentes que desconsideram a primeira língua do detetive belga: a maior parte das expressões em língua francesa passou a ser traduzida diretamente, sem oferecer sequer a oportunidade de o leitor construir uma imagem menos monodimensional do investigador. A consequência dessa decisão é que ela retira parte dos componentes que constituem a excentricidade da personagem. Ou seja, essa ingerência na concepção original da personagem sugere como uma narrativa pode ser impactada por (in)certas decisões editoriais.
Arquetípico ou não, Hercule Poirot deve muito de suas entradas ou saídas de cena ao fato de ser estrangeiro, ou seja, pensar, falar e agir de modo diferente em relação aos ingleses com que convive. Não por acaso, as histórias que protagoniza estão repletas de interlocutores que desconfiam dele, de início, por conta de sua origem. Quer dizer, a manutenção das falas no idioma original não é um pormenor sem relevância; pelo contrário, estimula que o leitor crie uma imagem mais consistente da personagem, somada às informações prévias sobre seu aspecto físico, seus trejeitos e manias.
Afinal, o que explica que se reduzam ou eliminem as expressões originais (em francês) empregadas pelo detetive mais conhecido de Agatha Christie?
1. Será uma decisão que visa economizar papel? 1.1 Essa interferência, que afeta a caracterização da personagem, teria o propósito de evitar o acúmulo das notas de rodapé?
2. A omissão do idioma original resultaria da falta de maior cuidado e rigor, durante a tradução ou (re)edição da obra?
3. A supressão da linguagem francesa sugeriria que determinadas casas editoriais subestimam a capacidade interpretativa do leitor?
4. Seria um modo enviesado de universalizar a tradução exclusivamente do idioma inglês entre os “consumidores” brasileiros?
Como diria Hercule Poirot, “Madame, I have advised. I can do no more. C’est fini.” (Senhora, eu tinha alertado. Não posso fazer mais nada. C’est fini* [*está acabado]).
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