Kamala Harris: o riso na política e a emoção raivosa das redes

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 22/08/2024 - Publicado há 3 meses

É difícil separar publicidade e política nos dias de hoje.

As redes sociais provaram, por meio de estatísticas, que a linguagem é capaz de fidelizar seguidores.

Já observaram, nas redes sociais, o predomínio das emoções, dos personagens raivosos, capazes de aumentar a dopamina circulante, o prazer, ao demonstrar ódio.

Em sentido inverso, a discussão política, como expressão de projetos políticos de uns e outros, não obteve os mesmos resultados. Fidelizou um número menor de internautas.

Por política, hoje, se entende a capacidade de estimular identidades com forte conteúdo emocional, a qualquer preço. O estímulo pode ser a fúria, o amor por animais ou histórias extraordinárias. Sempre a gosto do freguês.

No debate político, o objetivo é massacrar o Outro. A fórmula exige impacto nas redes sociais e nas vendas do comunicador. Narrativas policiais, realismo fantástico, pavor, atraem atenção. Tudo em excesso, vende.

Qualquer ser humano tem raiva. A descoberta atual, graças à tecnologia de ponta, refere-se ao fato da raiva ter utilidade política. Ela agrega mais do que qualquer outro sentimento de ancestralidade católica.

Coisas da atualidade.

Se a publicidade é a alma do negócio, e o objetivo de um candidato fidelizar eleitores, o caminho mais curto para alcançar o objetivo é aumentar as doses de ódio e desqualificar os temas políticos. É fato a vida democrática ser repleta de ambiguidades e desafios reais. Trata-se de um produto difícil de vender.

O que vende e o que não vende?

Sofrimento não vende.

Um exemplo do tipo fantástico esclarece. Imaginemos uma antipublicidade. Um vídeo postado nas redes, com a imagem de um homem esfomeado, à beira da morte, acompanhado de um letreiro: “Sobreviveu em um lixão depois de comer um pote de margarina X, descartado”. Certamente. a publicidade nestes moldes seria recusada pelo fabricante da margarina X, apesar do resultado da história ser positivo, o homem sobreviveu.

Para vender é necessário: beleza feminina aos montes, alegria masculina e cenário sugerindo fartura de dinheiro. Sem isto não vende nem margarina, nem carro elétrico, nem preservação do planeta.

Desgraça não vende.

Vende: um café da manhã repleto de guloseimas e uma família feliz com crianças bem alimentadas. Ninguém ansioso, atrasado ou com pressa para chegar com as crianças na escola na hora certa.

Família feliz vende. Adolescente já é arriscado pôr na foto.

Também não vende dizer: “A vida é dura”. A frase não gera aceitação do público (a não ser como piada), simplesmente porque a afirmação é verdadeira. A vida é, de fato, dura. Mas, se o objetivo é vender, convém mentir e dizer, por exemplo: “A vida é bela”.

Existem pequenos detalhes importantes na venda. Por exemplo: ironia vende bem no topo da pirâmide social.

Nelson Rodrigues é um bom exemplo:

Dinheiro compra até amor verdadeiro.

Rico e intelectual gostam da graça. Pobre não.

Linguagem conservadora

A linguagem conservadora anda chutando bem no gol. Ela encontrou, na linguagem de esquerda, seus pontos fracos. O apego ao sofrimento, ao reconhecimento das injustiças sociais, na defesa dos direitos humanos, entre outras questões semelhantes. Os temas merecem ser discutidos, mas não se prestam à venda. Trata-se de produto com “problemas de origem”. O papel do embrulho não é bonito, o sabor apimentado em excesso, e as soluções, exigem esforço mental e físico.

Projeto político para resolver problemas reais não vende porque é real.

Se a hipótese levantada for verdadeira, qual seria o remédio para mudar as coisas de lugar?

Resposta: se a política virou publicidade, até as suas entranhas, é melhor aprender esta linguagem para salvar o que for possível.

Kamala Harris e Tim Walz

Tenho mais esperança em Kamala e no seu vice-presidente Tim Walz do que na luz (razão) do final do túnel da humanidade. Os dois manipulam bem as palavras e, creiam, gostam de gente humana.

Kamala domina um dos principais instrumentos do debate político desde os gregos: a retórica argumentativa. Mas não sucumbe apenas a ela. Ela tem a habilidade do protagonista do filme Doze homens e uma sentença. Assistam. É um filme incrível, de 1957. Na história, um júri irá decidir a vida de um jovem, se ele é culpado ou não por um assassinato. O texto combina de forma admirável a arte retórica com o conhecimento dos meandros da alma humana, emoções, ingrediente em alta na atualidade.

Kamala e seu vice enveredam por este caminho, retórica bem aprumada com emoção vinda de baixo. E, mais um detalhe, como bem lembrou Ricardo Araújo Pereira (Folha de S. Paulo, 18/8/2024): ela dispõe da capacidade de estimular o riso feminino, uma irreverência diante dos homens. Vitória. Ela estimula o riso, diante de um homem machista, autoritário e arrogante por ter dinheiro.

A mulher que ri, na versão conservadora, é louca, incapaz ou sem educação.

Kamala abriu as portas da discussão política, de temáticas identitárias, da imigração e da desigualdade social e étnica. Ela pode ter ou não ter razão em suas propostas. Mas ela detém experiência na retórica argumentativa, essencial na vida democrática. E mais. Com a arma do riso acoplada à arte da retórica, exercida na função de procuradora-geral da Califórnia (2011-2017), Kamala sugere os caminhos para sair desta enroscada, fruto das novas tecnologias.

O grande desafio da política do século 21 é a linguagem digital manipulada pelos proprietários das redes sociais. A tecnologia colocou o Estado fora da jogada. Perigo à vista.

Vejo luz, no riso de Kamala, e na alegria, singela, de Tim Walz.

Emoção com qualidade de primeira.

E, além do mais, ALEGRIA, vende.

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