A defesa da “família” e a destruição dos direitos de mulheres e crianças

Por Heloísa Buarque de Almeida, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 24/10/2022 - Publicado há 2 anos

Nos últimos anos, domina na política o discurso de defesa da família, acompanhado de pânicos morais. O pânico moral é um sentimento de medo e de acusação infundada, fomentado por rumores exagerados que se referem a questões de gênero, sexualidade e que produzem a construção de inimigos perigosos. Pânicos morais gerados por fake news ajudaram a eleger o governo de extrema direita em 2018, por exemplo, inventando que existia um kit gay, ou em 2022 com acusações de um suposto banheiro unissex em escolas. Tais rumores infundados acusam as escolas e educadores, e reforçariam a família. Por trás do discurso moral, no entanto, dá-se a crescente destruição de direitos e de políticas públicas para as minorias.

Falas polêmicas da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos se coadunam com as políticas efetivamente implementadas (ou destruídas) pelo ministério. Na defesa de um ideal de família composta de um casal heterossexual e seus filhos, temos visto a ascensão internacional de forças de direita. Este movimento em nosso país foi incorporado por setores das igrejas pentecostais e grupos políticos conservadores, e se configurou num ataque aos direitos das mulheres, à população LGBTI+ e outras minorias.

A ministra e o discurso conservador falam de uma família ideal como lugar de proteção, calcada em estereótipos conservadores de mulher enquanto mãe que cuida, e do pai provedor como autoridade. No entanto, as formas de família no Brasil sempre foram variadas, como mostram as pesquisas históricas e socioantropológicas. E é preciso ter creches para completar o cuidado das crianças.

O discurso familista do atual governo promove políticas na direção da crescente privatização e individualização do que deveria ser direito das crianças e das mulheres: a escola pode virar home schooling; às mulheres caberá todo o cuidado, e, portanto, creches se tornam dispensáveis; há o reforço da ideia de que a família deve cuidar dos seus, privatizando também o cuidado de pessoas doentes, com deficiência e idosos. O discurso moral religioso e o pânico moral se coadunam com o fim do ideal do estado de bem-estar social e o discurso neoliberal individualizante, o Estado mínimo.

Se o Estado deveria oferecer escola, saúde e cuidado, o atual governo quer acabar com o SUS, não investiu em educação, creches ou saúde. Assim, a vacina, política social fundamental, vira desnecessária. Além da devastação da covid-19, reaparecem no País o sarampo e agora a poliomielite. Em contradição com a defesa da família, o que se viu foi a covid-19 devastando famílias – e não o sexo precoce, ou a masturbação. Foi a pandemia e o descaso do governo que deixaram uma geração de crianças órfãs e idosos sem cuidado.

O ministério que deveria proteger as mulheres não usou nem um quinto da verba disponível ao combate da violência doméstica, num país com altos índices de agressão. Na tradição religiosa, a ministra prega que mulheres que sofrem violência devem manter a família e a paz no lar – e essa ênfase se impõe num país que, no entanto, tem a Lei Maria da Penha para orientar as políticas públicas. As pesquisas sobre violência intrafamiliar e serviços públicos mostram que aprimorar os serviços de saúde e assistência social é muito eficiente para salvar mulheres e crianças de agressões – mas não é isso que vem acontecendo, muito ao contrário. Conservadores falam da família como lugar de proteção quando a maior parte das agressões contra mulheres e crianças acontece no ambiente familiar, sendo a escola muitas vezes a instituição que mais protege as crianças.

Espalhando pânicos morais contra o suposto tráfico e exploração sexual de crianças, a ministra no entanto ataca a escola pública e as creches, instituições fundamentais para a proteção da infância. Em vez de combater e promover políticas de prevenção efetivas, prefere o pânico moral, e abandona mulheres e crianças a enfrentarem sozinhas a violência intrafamiliar.


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