Cientistas e pesquisadores não são neutros

Por Gislene Aparecida dos Santos, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

 25/10/2022 - Publicado há 1 ano

Neste artigo gostaria de abordar, introdutoriamente, uma das dificuldades que, de meu ponto de vista, se vinculam ao modo como, tradicionalmente, entendemos o processo de construção do conhecimento.

Há uma tradição acerca do que é considerado conhecimento adequado. De acordo com ela, o sujeito que conhece deve se despir de tudo o que é sensorial, corporal, para alcançar a verdade de modo lógico e racional. Esse conhecimento somente é alcançado por meio de um método rigoroso que orienta o pensamento para longe das interferências externas ao próprio ato de pensar. É ensinado, assim, que o conhecimento adequado é esse praticado por um sujeito não corporificado, que se afasta de tudo que vem dos sentidos para que consiga chegar à essência do que as coisas são e às verdades. O conhecimento lógico, racional, também deve ser neutro, segundo essa vertente.

Já os estudos decoloniais discutem o erro dessa concepção que proveria da crença de que toda epistemologia moderna teria advindo da ideia de que haveria um centro de observação que seria neutro, não etnizado, universal, não localizado. Um ponto a partir do qual se observaria sem, contudo, ser observado, se veria sem jamais ser visto. Um tipo de conhecimento que associaria a objetividade e a cientificidade ao pressuposto de que o observador não faria parte do que seria observado. O observador que pensaria e criaria teorias não poderia coincidir com aquilo que seria observado e investigado por ele.

Influenciado por essa lógica, um dos questionamentos mais frequentes acerca do trabalho científico realizado por mulheres, negros, mulheres negras, indígenas – principalmente quando se dedicam a estudar o racismo, a xenofobia, o patriarcalismo, as desigualdades sociais – é que o produto de suas pesquisas seria puro ativismo. Considera-se que estariam profundamente envolvidos com o tema (sendo sujeito e objeto das investigações) e não teriam neutralidade. Ou seja, não seriam capazes de agir cientificamente, buscando a verdade.

Refuto esse argumento e concordo inteiramente com Linda Alcoff quando afirma que a filosofia ocidental opera dentro de um tipo de esquizofrenia acerca do que é corpóreo. Muitos filósofos consideraram as diferenças de gênero e raça para definir quem teria habilidades intelectuais, capacidades para o autogoverno, para a produção de cultura e civilização.

Desde os primórdios do pensamento filosófico ocidental lemos, como em Aristóteles, que as mulheres são associadas à imperfeição, aquilo que é incompleto, à incapacidade do conhecimento pleno, à necessidade de serem tuteladas, ao corpóreo, por natureza, inferior ao anímico. As mulheres são descritas como seres da natureza e não da cultura, suscetíveis às tentações dos sentidos e ao mal.

Iconografias representavam mulheres e mulheres negras como demônios ou como adoradoras dele. No período medieval, a cor negra era associada ao diabo. A exegese cristã foi utilizada para justificar a escravização de povos africanos considerados pecadores, sem alma, incapazes de reflexão e determinados, pela lei natural, à escravidão. Na Modernidade e Iluminismo, filósofos que defendiam a plena racionalidade dos europeus, também se ocupavam em explicar a completa inferioridade dos negros, mulheres e indígenas e de todo continente americano ao associar o novo mundo à infantilidade. E o século 19 foi prodigioso na construção de teses que expunham uma representação negativa de todo o continente africano em defesa dos intentos imperialistas.

Nesses momentos, o corpo, o contexto, a história foram evocados para definir a inferioridade dos negros, das mulheres, dos indígenas. Mas, quem os evocava (pensadores, filósofos, cientistas) se consideravam despojados de seus corpos para criarem essas teorias e outras teses, como se o ato de pensar, quando praticado por eles, não fosse limitado pelo corpóreo e pelos contextos que os envolveriam.

Cientistas e pesquisadores não são neutros. Leem os fenômenos a partir de horizontes interpretativos que os fazem mais ou menos sensíveis a alguns temas, mais ou menos observadores de alguns aspectos, todos têm vieses.

Parte do processo de pesquisar e conhecer envolve admitir os horizontes interpretativos que cada pesquisador ou pesquisadora possui, considerar o impacto dos vieses e dos interesses associados às investigações e ao financiamento delas.

Também é preciso ter o desejo de ampliar os horizontes interpretativos. Nem todos o têm. E os horizontes interpretativos só podem ser ampliados por meio de novas experiências de vida, de reflexão, de aprendizado. Por isso, investir na diversidade dentro do espaço onde aprendemos a pensar e a pesquisar é essencial para que tenhamos novas experiências e novas janelas para o mundo que contribuam para pensar de maneira complexa sobre tudo o que existe, construir novos conhecimentos e inventar o que ainda não há.


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