A filosofia do corre e a impossibilidade da liberdade

Por Gislene Aparecida dos Santos, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

 25/07/2023 - Publicado há 11 meses

Em uma entrevista que concedeu à apresentadora Oprah Winfrey, Viola Davis informou que seu livro Finding Me traz relatos de uma vida imersa na miséria, violência doméstica, de abusos e racismo que, infelizmente, ainda são comuns em tantas partes do mundo quando se trata de mulheres negras.

Aos oito anos de idade, ao sair da escola, tinha que fugir, cotidianamente, para se livrar dos ataques cruéis e ferozes dos meninos brancos, da mesma idade, que a ofendiam a chamando de negra e feia e atiravam tijolos, gravetos ou qualquer coisa que encontrassem com o objetivo de machucá-la. Ela corria, corria, corria e os enfrentada, quando necessário, com as armas que tinha (naquele momento, uma agulha de tricô).

Mesmo tendo alcançado o sucesso em sua carreira e com as condições materiais de sobrevivência totalmente resolvidas, sentia que continuava a ser aquela mesma criança que passou a vida inteira correndo. Agora usando as máscaras de coragem, bravura, para ser uma pessoa que imporia respeito. Isso a levou a buscar se encontrar e a decidir quem realmente ela era e queria ser.

Essa história segue sendo vivida por diferentes mulheres negras que enfrentam experiências de desumanização e ilustram o que eu defino como “A filosofia do corre”.

Não é raro ouvir de mulheres negras ativistas, trabalhadoras, acadêmicas, que elas estão sempre “no corre”. Esse “corre” é a referência às ações políticas cotidianas necessárias para a transformação da sociedade, mas também, necessárias para a nossa própria sobrevivência em um mundo no qual somos agredidas de diferentes formas e lutamos com as armas que possuímos para assegurar nossa sobrevivência. Pensamos e agimos.

A filosofia do corre se baseia exatamente na ideia do pensamento-ação. Mas mais do que pensamento-ação, exige o pensamento apartado do ócio, sem descanso, sem tempo para se demorar na reflexão descolada da necessidade da transformação social. Nós, mulheres negras, vivemos no tempo da necessidade e não no tempo da vontade. O que isso significa?

O sentido da palavra necessidade, para a filosofia, não é o de carência/falta. É o sentido de que algo somente pode ser de um modo e não de outro modo. Por exemplo, é necessário que o sol nasça todas as manhãs, é necessário que respiremos para sobreviver. Só pode ser assim e não de outro modo.

A filosofia do corre surge associada à ideia de que é necessária uma ação política das mulheres negras para que a sociedade mude. Não pode ser de outro modo. Sem a nossa luta, o mundo não mudará para nós, não mudará para os outros. E, de fato, é isso que acontece. O “corre” da luta política das mulheres negras é o que move o mundo em vários sentidos, em várias direções e para várias pessoas, sendo elas negras ou não.

Mas não podemos nos esquecer que, em sentido filosófico, a necessidade é o oposto da liberdade. Se o necessário é o que não pode ser de outro modo, a liberdade é aquilo que que nasce de nossa vontade, desvinculada de qualquer necessidade, de qualquer obrigação, de qualquer determinação. Se concordamos com esse raciocínio, temos que admitir que as mulheres negras não são livres mesmo quando lutam, ou exatamente porque lutam, incansavelmente, pela liberdade, pela transformação social, pelo fim das desigualdades.

Hoje, ainda vivemos em tempos em que somos obrigadas à luta pela transformação social pagando o preço da perda de nossa liberdade, de nossa vida, de nossa saúde, nos privando do tempo com nossos filhos, filhas e familiares. Se não lutamos morremos, vemos os nossos morrerem. Nossa luta é pela vida.

Penso que o melhor modo de honrarmos o legado de Terezas, Dandaras e Carolinas, mulheres que dedicaram suas vidas a ação em prol da liberdade é defendermos que mulheres negras possam ter o direito ao ócio que sempre nos foi negado, o direito ao tempo para andar devagar, sem pressa e viverem a vida que quiserem viver. Uma utopia em um país que insiste em nos negar reconhecimento de direitos como pessoas humanas, como mulheres, direito a estima social.

Os existencialistas diziam que somos condenados a sermos livres e que a liberdade é uma condição humana. Mais uma vez se exclui do sentido de humanidade a experiência vivenciada pelas mulheres negras já que somos “jogadas no mundo” sem qualquer liberdade, sem o direito de nos tornarmos o que quisermos ser e sim com a necessidade de lutar para um dia termos o direito à autodeterminação e à liberdade. Essa é a nossa filosofia e nela, a liberdade é um devir.

[O texto abaixo é uma versão resumida de uma palestra proferida à Escola da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em 2022.]
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