Usando a inteligência artificial para tornar a teoria de cordas falseável

Por Gabrielle Weber, professora da Escola de Engenharia de Lorena (EEL) da USP

 21/05/2024 - Publicado há 6 meses     Atualizado: 04/06/2024 às 20:19

 

Uma das forças motrizes subjacentes ao desenvolvimento da Física é a ideia de unificação: o sonho de se encontrar uma única teoria capaz de descrever todos os fenômenos naturais. Utópico, certamente, mas também pragmático, no sentido de que todo passo concreto nessa direção levou a importantíssimos saltos conceituais. Atualmente, reconhecemos que ocorreram duas grandes unificações na Física. A primeira foi feita por Isaac Newton no século 17 da era comum, quando ele unificou a gravitação terrestre de Galileu com a gravitação celeste de Kepler, permitindo, entre outras coisas, que compreendêssemos o fenômeno das marés.

Posteriormente, no século 19 da era comum, James Clerk Maxwell iniciou a segunda, quando descreveu de maneira unificada os fenômenos elétricos e magnéticos com as equações que hoje levam o seu nome. Com isso, passamos a entender a luz como uma onda eletromagnética. Foi justamente ponderar sobre o comportamento da luz no contexto da teoria de Maxwell que levou Albert Einstein a propor, em 1905, a sua teoria da relatividade restrita, unificando os conceitos de espaço e tempo e de massa e energia. Anos depois, Paul Dirac foi um dos responsáveis por unificar a relatividade restrita com a mecânica quântica, iniciando o desenvolvimento da teoria quântica de campos, que permitiu a unificação do eletromagnetismo com as forças fraca e forte no que chamamos de Modelo Padrão da Física de Partículas.

Apesar de sua consistência interna e de um sucesso experimental sem precedentes na história da Física, o Modelo Padrão ainda está longe de ser a teoria unificada com que sonhamos. Além de não incorporar a gravidade, ele apresenta uma série de lacunas. Falta, por exemplo, uma explicação de primeiros princípios para os valores das massas dos léptons e quarks, que entram como parâmetros medidos experimentalmente. Não bastasse isso, não fazemos ideia de por que há uma discrepância de seis ordens de grandeza entre as massas do lépton mais leve, o elétron, e do quark mais pesado, o top. Atualmente, o único arcabouço teórico que nos permite, em princípio, ponderar sobre esse problema é a teoria de cordas.

A teoria de cordas surgiu no final da década de 1960 como uma proposta para descrever a interação forte, substituindo partículas pontuais por cordas ainda menores que, ao se propagarem pelo espaço e interagirem entre si, dariam origem à fenomenologia observada. Nesse contexto, as diferenças (de massa, de carga etc.) entre as partículas corresponderiam apenas a diferentes modos vibracionais de um mesmo objeto fundamental. A despeito de seu apelo estético, ela foi eventualmente suplantada pela cromodinâmica quântica (que hoje integra o Modelo Padrão) e só não foi esquecida porque, no começo da década de 1980, Edward Witten percebeu que ela também fornecia uma descrição quântica matematicamente consistente da gravitação. Logo, ao proporcionar uma descrição unificada da física de partículas com a gravidade, constituía uma forte candidata à tão sonhada teoria de tudo.

Contudo, obter a partir da teoria de cordas uma fenomenologia que corresponda à física que observamos com os aceleradores de partículas e os telescópios está longe de ser uma tarefa fácil. Um dos motivos é que, para a teoria ser matematicamente consistente, as cordas precisam viver em um espaço-tempo com dez dimensões. Por outro lado, o espaço-tempo que observamos possui aparentemente apenas quatro: três espaciais e uma temporal. Uma forma que encontramos para contornar esse problema é considerar que essas seis dimensões sobressalentes sejam muito pequenas e estejam enroladas em formas geométricas microscópicas que se parecem com esponjas de banho surrealistas. Assim, ao se propagarem sobre essas esponjas, as cordas dariam origem a campos quânticos que vazariam para as quatro dimensões macroscópicas que observamos. Infelizmente, não só existe um número praticamente infinito de esponjas e formas de enrolar as seis dimensões sobre elas compatíveis com o Modelo Padrão, algo da ordem de 10700, como também não sabíamos como calcular as propriedades das partículas que emergem desse processo. Logo, a teoria de cordas seria incapaz de fazer qualquer previsão experimentalmente falseável, sendo severamente (e com razão) criticada por isso.

A primeira dessas dificuldades, conhecida como o problema da paisagem e que corresponde a identificar as esponjas adequadas para obtermos extensões do Modelo Padrão, começou a ser domada apenas nos últimos anos. Um grupo britânico mostrou que algoritmos genéticos podem ser empregados de maneira extremamente eficiente para identificar boas soluções dentre essa infinidade de possibilidades. Trabalhando num contexto simplificado, em que essas esponjas hexadimensionais são descritas pelas chamadas variedades de Calabi-Yau, eles conseguiram encontrar as soluções que levassem ao mesmo tipo de partículas e de simetrias que o Modelo Padrão.

Variedades de Calabi-Yau são particularmente interessantes nesse contexto por dois motivos. Primeiramente, elas levam a teorias muito mais fáceis de se estudar ao preservarem parcialmente uma das simetrias centrais da teoria de cordas: a supersimetria. Trata-se de uma simetria proposta entre férmions (partículas tipo o elétron) e bósons (partículas tipo o fóton) que é necessária para a consistência da teoria de cordas. Apesar de não ter sido observada na escala de energia explorada por aceleradores como o LHC, acredita-se que ela possa estar presente em escalas de energia muito maiores ainda inacessíveis experimentalmente. Em segundo lugar, a forma como elas se curvam é significativamente mais simples, correspondendo a generalizações multidimensionais das rosquinhas. Além disso, a cada buraco (como em uma rosquinha) de uma variedade de Calabi-Yau pode ser associado um conjunto de padrões vibracionais de baixas energias das cordas. Como as partículas elementares do modelo padrão correspondem exatamente a essas vibrações de baixas energias, a presença desses buracos faz com que as famílias distintas de partículas elementares emerjam naturalmente. Grosso modo, uma variedade de Calabi-Yau com três buracos seria suficiente para termos as três famílias de partículas elementares que constituem o Modelo Padrão.

A segunda dificuldade, que corresponde a calcular as massas dessas partículas, bem como a intensidade da interação entre elas, números que são colocados à mão no Modelo Padrão a partir de dados experimentais, envolve conhecer profundamente uma dessas variedades de Calabi-Yau identificadas. Nesse caso, uma das características necessárias é a métrica da variedade. Trata-se de uma função que estabelece uma régua natural, permitindo, por exemplo, que calculemos distâncias e ângulos nessas geometrias complicadas. Como as métricas das variedades de Calabi-Yau são soluções das equações de Einstein para o espaço vazio, bastaria resolvê-las.

Contudo, resolver as equações de Einstein em seis dimensões não é nada fácil. É neste ponto que entram as redes neurais: elas proporcionam a velocidade e a flexibilidade que as técnicas anteriores não tinham. Seu funcionamento pode ser resumido da seguinte forma: chute uma métrica e verifique se ela satisfaz a equação de Einstein em centenas de milhares de pontos do espaço hexadimensional; repita ajustando o chute a cada iteração até obter uma solução sobre toda a variedade. Com a métrica em mãos, faltava apenas saber como os campos quânticos (originados a partir das cordas vibrantes) se propagavam sobre a variedade. Usando um algoritmo similar, o grupo liderado por Burt Ovrut conseguiu pela primeira vez calcular as massas de três tipos de quarks distintos mostrando não apenas a sua dependência na forma da variedade de Calabi-Yau, como também que surgia naturalmente uma separação entre as massas das três partículas.

Os resultados obtidos ainda não passam nem perto dos observados na natureza. Contudo, isso sequer era esperado, já que o objetivo do trabalho consistia em estabelecer e demonstrar a viabilidade de um algoritmo de inteligência artificial que, dada uma variedade do tipo Calabi-Yau, calculasse as massas das partículas previstas pela teoria de cordas. A pergunta que resta é: será possível encontrar variedades que reproduzam o Modelo Padrão e façam novas previsões teóricas que possam ser verificadas experimentalmente? Ainda é cedo para afirmar, mas podemos estar diante do começo da terceira revolução das cordas.

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