“(…) fosse uma manhã de sol o índio tinha despido o português.”
Oswald de Andrade
Sob a perspectiva da história das exposições, vertente relativamente nova entre os estudos dedicados à arte, não há como negar o crescente interesse por curadores, artistas e obras que evocam pautas identitárias. No circuito das exposições nacionais e internacionais, a inserção de propostas artísticas que lidam com as memórias, as identidades, o pluralismo estético e a diversidade de modo geral aparentemente tem provocado fluidez na relação centro-periferia. Porém, há muitas armadilhas nesse percurso trilhado pela arte afro-indígena contemporânea.
Por muito tempo, o mundo da arte foi território eurocêntrico, hierárquico e fechado à presença do “outro” – que só aparecia como tema exótico, nunca como agente de sua própria história. Porém, hoje, esse “outro” ganhou evidência, tomou posse de seu corpo e de sua representação e, consequentemente, lhe atribuem pesadas críticas sobre esse protagonismo. Alguns dizem que a “Arte” (com A maiúsculo) se perdeu; que foi substituída pela política, sociologia ou pela etnografia ou, ainda, que o caos estético está instalado e que a arte como linguagem “universal” corre risco.
De certo modo, o protagonismo do “outro” no campo artístico é abordado por estudiosos como a reviravolta da representação de negros e indígenas que durante os séculos 19 e 20 foram vistos como um problema para o ideal de civilização branca. Nos últimos 40 anos, ganhou força a noção de que a hierarquia estética construída a partir de conceitos e empreendimentos que visam a subalternização de grupos humanos é parte da colonialidade e, nela, estão as relações de poder (sejam elas patriarcais, religiosas, heterocentradas ou étnico-raciais).
Na atualidade, a “afirmação das diferenças” e a garantia dos direitos civis e socioambientais geram demandas que não se restringem à esfera cultural. São reivindicações que se dão na arena política, econômica, social, mas, sobretudo, aparecem nas manifestações artísticas – e toda mudança no status quo ocasiona reações, (res)sentimentos e assentamentos. A expectativa mínima de perda de privilégio, seja em qualquer esfera social, permite aos críticos conservadores o menosprezo pela produção do “outro” e surgem as designações pejorativas, tal como o “wokismo”.
Em contrapartida, essas narrativas silenciadas por tanto tempo exibem-se com o vigor daqueles que querem devorar o mundo. Em 2023, por exemplo, aqui no Brasil, foram diversas as mostras que trataram sobre as pautas identitárias, entre algumas, estão: Retratistas do morro (Sesc Pinheiros), Dos Brasis – arte e pensamento negro (Sesc Belenzinho), Negros na piscina (Pinacoteca do Ceará), Encruzilhadas da arte afro-brasileira (CCBB-SP) e Histórias indígenas (Masp). Nessas exposições, artistas mulheres, negros, indígenas e pessoas LGBTQIA+ se sobressaíram como figuras centrais. Aos críticos mais sisudos parece que esses artistas ocupam um lugar que não lhes pertence, contudo, convém lembrar que mais do que indivíduos, são suas proposições, subjetividades, memórias e experiências que se fazem presentes nesses eventos.
Nessas mostras, a representatividade e a identificação (artista-obra-público) entram como fatores significativos no plano de sua organização – em muitas delas, nos programas constam, com a mesma relevância, as ações educativas, isto porque artistas, curadores e gestores percebem o campo das artes visuais também como oportunidade de letramento para a equidade e contra o racismo e a homofobia. Em especial, as instituições que abrigam essas mostras querem atender às demandas de seus públicos. E nota-se que o público tem correspondido e esperado por essas ações culturais.
Nesse contexto, as artes visuais têm a possibilidade de se tornarem meios de divulgação e de institucionalização da autoimagem e da subjetividade dessas populações historicamente invisibilizadas – as artes comunicam os modos de organização social e, mais, informam as possíveis transformações. Por isso, centrar críticas aos indivíduos (artistas e curadores) é algo improdutivo.
Alguns críticos temem que a evidência em pautas sociais seja um critério de exclusão de outros artistas e obras que não lidam diretamente com essas questões, mas não é possível concordar com esse pânico. Acima da origem dos artistas e dos curadores, a arte nos ensina a desconstruir as obviedades, desconfiar da unanimidade e a questionar o sacralizado. Os artistas, os temas e as prerrogativas não se descolam do mundo em constante movimento.
São as subjetividades e as experiências que contam mais: se a obra diz sobre o modo de ser e de viver no mundo e, se essa mensagem encontra ressonância nas pessoas (curadores, artistas e público), então, vem daí a força-motriz desta produção artística. A arte afro-brasileira e a arte indígena contemporânea são o resultado de conflitos e negociações entre experiências sensíveis nativas, europeias e africanas – essas manifestações contam sobre o tempo contemporâneo.
Simultaneamente, é preciso ter ciência de que tudo está em curso – tudo está em disputa. Por mais que se apregoa que a arte é o “território da liberdade”, as pautas artísticas ainda são demandadas pelas antigas metrópoles que ditam o que se vê (ou não). Nesse âmbito, está a discussão sobre o movimento de internacionalização da produção artística afro-indígena. O que, num golpe de vista, parece a conquista dos periféricos, pode não ser tão linear assim…
Nessa tensão entre centro e periferia, o sistema da arte criou expectativas acerca da produção visual dos curadores e criadores afro-indígenas. Em diversos casos, esses agentes são aceitos tão somente como autorias orientadas a partir do parâmetro colonial e não como curadores e artistas capazes de dialogar sensivelmente sobre quaisquer temáticas além da questão étnico-racial – algo como Françoise Vérge coloca como “negro é o modelo, branca é a moldura”.
Agora, artistas ligados aos saberes afro-indígenas estão na Bienal de Veneza, com curadoria de Adriano Pedrosa (primeiro latino-americano a ocupar essa função), mas também tivemos a mostra Atlântico Vermelho, no Fórum da Organização das Nações Unidas (ONU), em Zurique, e a primeira individual de Rosana Paulino, Amefricana, no Malba, em Buenos Aires.
Duas edições da Bienal do Mercosul, ocorridas respectivamente em 2018 e 2020, somadas às duas edições mais recentes da Bienal de São Paulo – e aqui destaco a 35ª Bienal de São Paulo – Coreografias do Impossível, com curadoria de Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel – deram provas do papel fundamental das instituições nos processos de legitimação e de divulgação internacional dessa produção artística.
Assim, entender esse trânsito nacional-internacional é importante. Diga-se ainda que esse processo de internacionalização das identidades e subjetividades negras e indígenas teve início bem antes dessas exposições citadas. Desde os anos 1980, algumas iniciativas já demonstravam esse caminho. Nesse sentido, Primitivism in the Twentieth Century, realizada no MoMA, em 1984, Les Magiciens de la Terre, organizada pelo Centre Pompidou em 1984 (esta última contou com a participação de Mestre Didi), aproximaram a produção do centro à margem e desencadearam um denso debate sobre o etnocentrismo e o racismo na arte.
Talvez essas mostras possam ser colocadas no campo da ação política que surtiu efeitos no século 21, tendo como resultado a inclusão desses criadores em plataformas expositivas privilegiadas. Assinale-se que artistas afro-brasileiros que primeiro despontaram internacionalmente na arte contemporânea, tais como Agnaldo Manoel dos Santos, Rubem Valentim e Mestre Didi inspiraram gerações de outros artistas, como Sonia Gomes, Ayrson Heráclito e Rosana Paulino – inegavelmente expoentes da arte contemporânea brasileira com um histórico de exibições internacionais, particularmente em edições da Bienal de Veneza.
Adjacente, o interesse internacional na relação entre arte e pautas identitárias dá margem para que o Brasil se (re)conheça em seu pluralismo estético. Artistas, curadores e instituições esgarçam os estereótipos e desafiam o exotismo. A efervescência do circuito nacional proporciona intercâmbios e posiciona as artes afro-indígenas em exposições e em instituições internacionais.
No entanto, esse movimento internacionalizante não está livre das visões exotizantes e padronizadoras – tal como no passado colonial – lembremo-nos que a demanda se constrói nas relações dos grupos, a partir do seu interesse por consumo de bens materiais ou culturais e, muitas vezes, essa dinâmica se adequa aos interesses dos grupos dominantes.
Nesse ponto, devemos lembrar ainda que o circuito internacional de exposições está intrinsecamente ligado ao sistema da arte, ou seja, ao conjunto de agentes (galeristas, curadores, artistas, críticos, colecionadores, especialistas etc.) e instituições que desempenham diferentes funções no mundo artístico. Esse sistema, então, busca apropriar-se das histórias, transformando-as em mercadoria. O acréscimo de atributos identitários às obras agrega valor ao produto, diferenciando-o. Essas obras trazem relatos, formas de ser e estar no mundo, mas também são novos produtos neste sistema.
Nessa dinâmica, os discursos artísticos são rotulados e uniformizados; os agentes que estão nos centros hegemônicos inventam modos e palavras que deem conta dos sentidos dessas obras; esses agentes são obrigados a conviver com as reivindicações dos subalternizados. Apesar de ainda não despido de suas ideias eurocêntricas e coloniais, o sistema da arte tem sido obrigado a rever suas narrativas e organização. E, agora, ao menos, o que parece é que essa é uma disputa em plena vigência.
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