A sociologia da imagem e seu potencial epistemológico nos estudos migratórios

Por Ismael Eduardo Schwartzberg Arteaga, doutorando na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

 20/09/2023 - Publicado há 10 meses
Ismael Eduardo Schwartzberg Arteaga – Foto: Arquivo Pessoal

 

O sociólogo italiano Franco Ferraroti, em seu importante texto intitulado Las Historias de vida como método, fundamenta a importância dos métodos qualitativos para a análise do social, e principalmente faz referência ao método de histórias de vida. O autor argumenta que os métodos quantitativos se limitam aos dados, às respostas fechadas de sim ou não; mas os métodos qualitativos, e no caso do método de histórias de vida, o sujeito não se reduz a um simples dado, é um processo, o qual tem uma historicidade que deve ser entendida e respeitada.

No entanto, Ferraroti defende a ideia que, para realizar uma pesquisa utilizando o método de histórias de vida, é necessário um tempo que permita estabelecer uma relação significativa com as pessoas a serem entrevistadas, isto é, uma relação de confiança na qual, ao menos por um curto período, seja possível estabelecer uma relação de horizontalidade entre o entrevistador e o entrevistado.

Inicio o texto apresentando este prestigiado sociólogo, pois na dissertação de mestrado utilizei o método de histórias de vida e, na tese de doutorado em andamento, utilizo na estratégia metodológica. Porém, após vivenciar a experiência como imigrante desde o ano de 2015, quando cheguei ao Brasil vindo da Bolívia, e estudando novamente o processo migratório boliviano, posso afirmar que, na construção dessa relação significativa, identifico importantes nuances do que o sociólogo italiano afirma em seu trabalho.

E neste período que estou realizando novamente entrevistas, sinto que a tão almejada relação de horizontalidade depende principalmente das semelhanças entre o entrevistador e o/a entrevistado/a, semelhanças que também vêm das experiências do sujeito que pesquisa, e, no caso da migração, quando o entrevistador e o entrevistado partilham a mesma condição de estrangeiro, o que implica também uma relação de cumplicidade.

A horizontalidade, pessoalmente, só pode ser um desejo, porque na minha posição de entrevistador sou portador de um status que diferencia, o que implica que no país de origem, tive privilégios que a maioria das pessoas que entrevistei ou entrevistarei não tiveram, como consequência de um fato colonial que se reproduziu no transcorrer dos diferentes períodos na história de meu país. No entanto, por compartilhar variados momentos e vivências, como festividades cívicas ou religiosas, possibilitam experimentar a horizontalidade a partir dos aspectos rituais. O ritual constrói a coletividade e isso possivelmente facilita no momento formal da entrevista.

Em uma sociedade heterogênea como a boliviana, a ritualidade é vivenciada na vida cotidiana, sendo sua essência a forma resiliente à modernidade individualizante produzida pelo capitalismo cognitivo, sabendo conviver em dimensões de pensamento diferentes que se justapõem, mas que não se sincretizam ou se fusionam. Lógicas ch´ixi  e práticas que se reproduzem no choque de opostos transformando e reinventando lógicas comunitárias em estruturas organizativas sociais que unem economia, folclore e religiosidade como formas de expansão de uma economia popular transnacional, lógicas de ordenamento e reconhecimento social através de redes de amizade baseadas em termos morais e éticos de reciprocidade.

Nesse sentido, o conhecimento surge de uma alegoria de vozes vivenciada com a mesma experiência imigrante, e as entrevistas se afastam de uma dinâmica formal para um diálogo, uma interpretação de experiências individuais. Como argumenta Ferraroti, “observamos com os olhos, mas vemos com as memórias, impressões, leituras anteriores” e, a partir do diálogo e do encadeamento das subjetividades como uma polifonia de vozes, é que surge a memória coletiva.

No entanto, as histórias de vida serão parte de uma estratégia metodológica mais ampla, baseada na sociologia da imagem, uma metodologia elaborada pela socióloga e ativista boliviana Silvia Rivera Cusicanqui, que propõe uma descolonização do olhar, compreendendo o mundo a partir das coisas pequenas, as coisas que formam parte de nosso entorno, porque nelas é possível encontrar as ações, os símbolos que revelam os vestígios de um passado colonial não superado.

Assim, a autora articula que a sociologia da imagem se diferencia da antropologia visual, porque não quer olhar ao outro, não se pretende ser observador participante de algo para depois fazer a representação daquilo. Na sociologia da imagem, o sujeito que pesquisa já é participante daquilo que pretende investigar, o conhecimento é também um processo de autoconhecimento. Entretanto, o trabalho intelectual se limita ao se afastar dessa realidade, desse entorno, para voltar-se com um olhar focado e crítico.

É por isso que a sociologia da imagem tem um potencial epistemológico importante, e como imigrante que estuda a imigração do processo migratório do qual faço parte, a meu ver faz muito sentido. Porque, ao longo do tempo, vamos nos acostumando a condicionamentos sociais, a relações de poder estabelecidas como fatos não insuperáveis, pelo qual se faz necessário seguir aprofundando aquilo que para outros já deixou de ser interessante – pelo simples fato que não existe uma conexão pessoal, um interesse de ativismo político, e só um interesse pessoal e acadêmico. Sendo necessário observar e participar de outros grupos ou fenômenos sociais porque a esfera acadêmica já priorizou como mais relevantes.

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