Lições de “Uma africana no Louvre”

Por Alecsandra Matias de Oliveira, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes da USP

 27/03/2023 - Publicado há 1 ano

Algumas pessoas reconhecem a tela Retrato de uma mulher negra, 1880, de Marie-Guillemine Benoist (1768-1826), porque a pintura surge como uma aparição nos últimos segundos do clipe da música Aspeshit, de Beyoncé e Jay-Z, gravado nas salas do Louvre, em 2018. Entre obras referenciais, tais como a Mona Lisa e a Vitória de Samotrácia, as superestrelas performam seus corpos racializados e, de repente, aquele retrato… a tela toma protagonismo no vídeo apenas por segundos – o suficiente para diversas interpretações daqueles que estudam a história da arte. Cabe dizer que esse não é o primeiro clipe de Beyoncé discutido nas rodas acadêmicas, pelo menos, no círculo nacional – como esquecer a polêmica da estampa de oncinha?

Adjacente ao mundo pop, outros interessados na tela de Benoist entendem que a obra é, de certa forma, chave para novas abordagens na história da arte. E, aqui, entram as pesquisas de Anne Lafont, historiadora da arte francesa, especialista em pintura dos séculos 18 e 19, com foco no entendimento sobre a representação dos corpos negros e sobre o lugar da arte negra no cenário colonial e pós-colonial. Lafont ganha destaque a partir de 2018, quando integra o conselho científico da exposição Le modêle noir de Géricault à Matisse, no Museu d´Orsay.

Seu livro L’art et la race. L’Africain (tout) contre l’œil des Lumières [em livre tradução, Arte e raça. O africano (tudo) contra o olhar do Iluminismo 2019], salvo engano, ainda não publicado no Brasil, traz dez anos de trabalho de pesquisa e atinge grande repercussão no meio acadêmico. Na sequência, Lafont lança Une africaine au Louvre (Uma africana no Louvre, editora Bazar do Tempo, 2022), traduzido por Ligia Fonseca Ferreira, professora da área de língua francesa e literaturas de expressão francesa no Departamento de Letras da Unifesp – Universidade Federal de São Paulo. Destaco o percurso da professora, uma intelectual preocupada com as dinâmicas sociais e dedicada a divulgar os escritos de Luiz Gama. Seu livro Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (Edições do Sesc), publicado em 2020, é crucial para as pesquisas sobre a resistência negra no Brasil.

Retomando as atenções sobre o livro Uma africana no Louvre, elucida-se que o escrito é a adaptação de uma conferência ministrada, em primeira mão, no Instituto Warburg, Londres, em 2018. Desde o início, a autora nos alerta que duas outras conferências foram desenvolvidas a partir desta reflexão inicial. Além da análise da obra de Benoist, o livro contém uma entrevista com Anne Lafont, realizada por Amanda Carneiro – o que nos deixa mais próximos às ideias da historiadora, ao seu percurso e ao emprego do conceito de raça no campo da história da arte.

Pequeno e de leitura agradável, o estudo traz a análise da tela Retrato de uma mulher negra, 1800, atribuída a Marie-Guillemine Benoist, uma das raras mulheres artistas no século 19 que integram o acervo do Louvre, aluna de Élisabeth Vigèe Le Brun e de Jacques-Louis David. Mas, no entanto, as atenções de Anne Lafont não estão na artista, mas sim na modelo.

No texto, a autora declara seus objetivos: “(…) minha intenção é demonstrar que modelos participam da produção de sua imagem e que também, ao observar as diversas formas que os retratos de mulheres negras assumiram no contexto atlântico, é possível constituir um corpus que se revela como fonte e recursos necessários para o conhecimento da vida africana nas colônias” (…)”. Por meio de suas investigações, Lafont nos permite conhecer Madeleine, a modelo. A jovem negra, criada da família Benoist, provavelmente, veio de Guadalupe, nas Antilhas. Já no início, Lafont descreve o retrato: “Uma jovem negra, de pele marrom realçada por delicadas sombras escuras, está elegantemente sentada numa poltrona estofada em tecido verde, na qual repousa um xale azul (…)”. Neste ponto, escolho interromper a descrição porque prefiro aquele toque de curiosidade, mas atesto que a pesquisadora nos dá uma bela análise do retrato a partir da modelo. E por que aprofundar estudos sobre o modelo negro torna-se algo inovador na história da arte?

Numa primeira visada, mencione-se que as abordagens mais comuns partem das condições e motivações do criador (o artista) e, até mesmo, ignoram o retratado (visto, muitas vezes, como objeto ou tão somente motivo). Quantos modelos tiveram seus nomes ausentes nos registros históricos? Quantos outros são reconhecidos, mas têm sua relação com o artista negligenciada no exercício de análise da obra? Quando Anne Lafont adverte que “modelos participam da produção de sua imagem”, ela nos lembra que existe uma relação íntima entre modelo e artista. Cabe ao historiador também investigar esse vínculo. Em Uma africana no Louvre, a relação entre artista-modelo está presente; o lugar social de cada uma dessas mulheres está marcado no texto.

Para além da densidade desta relação, é preciso partir de uma questão básica: o que significa o retrato na história da arte? De longa tradição, o retrato (ritratto, do italiano) liga-se à questão de gênero estilístico: pintura histórica, retrato, natureza-morta e paisagem. O termo associa-se à representação do rosto humano. Qualquer que seja o modo de expressão, a época ou o lugar em que a arte se manifeste, ela tem tentado traduzir de modo mais completo o mundo que se oculta atrás de cada rosto. Porém, essa necessidade de representá-lo não constitui um fenômeno tão natural como à primeira vista pode parecer. Algumas culturas restringiram a arte de retratar, pois o seu fascínio era tão poderoso que a religião proibia que fosse esculpido, pintado ou desenhado, mesmo que sob uma forma idealizada.

Desde a origem das primeiras representações, na pré-história, em que alguns simples traços resumiram as feições do rosto, o ato de retratar nunca deixou de se transformar. Os eventos históricos mostram que o retrato, muitas vezes, serviu como distinção social, enfatizando reis, heróis, nobres etc. A título de exemplo, temos a escultura Ebih-Il nu-banda, da cidade de Mari, Eufrates Médio, esculpida cerca de 2.700 a.C. A peça perpetua a presença de Ebih-Il junto à deusa Ishtar e prolonga suas preces. Ou ainda, a figura do governador Gudea, de Lagash, Mesopotâmia, cerca do ano 2.200 a.C., da qual se mantém mais de trinta estátuas. São obras que se encontram no Museu do Louvre – tal como o retrato de Madeleine.

Séculos mais tarde, o retrato ganhou novas possibilidades técnicas com o aperfeiçoamento da pintura a óleo durante o Renascimento. Jan Van Eyck conseguiu efeitos e traços – marcas faciais surpreendentes e, mais tarde ainda, o advento da fotografia também proporciona retratos célebres.

Alguns modelos “entraram para a história”, tais como, Simonetta Cattaneo Vespúcio, nobre italiana que serviu de modelo para as obras O nascimento de Vênus e A primavera, ambas de Botticelli. Sabemos quem é a Gioconda; quem é a pequena bailarina de Degas. Carmen Gaudin, por exemplo, era uma prostituta que chamou a atenção de Toulouse-Lautrec. Ele escreveu para sua mãe sobre como conheceu uma garota de cabelos dourados. Instantaneamente, ela se tornou uma de suas modelos favoritas. Ou, ainda, Lise Tréhot, amante de Renoir, ou a jovem de 18 anos chamada Victorine Meurent, que se tornou figura central em muitas das obras de Manet, inclusive a polêmica Olympia.

Quando Lafont resgata a história de Madeleine e a coloca dentro da grande narrativa da arte francesa através das referências às pinturas da época, como a tela Madame Charles-Louis Trudaine, 1794, de Jacques-Louis David; quando retoma o repertório de significados presentes na tela, tal como o seio desnudo – também presente em A negra, 1923, de Tarsila do Amaral, e Mãe preta, 1912, de Lucílio de Araújo, ela a humaniza e, simultaneamente, a insere na história da arte.

O corpo de negro, de Madeleine, tem historicidade. Algo desprovido em diversas pinturas brasileiras que mostram negros e indígenas, mas não os individualizam – e aqui dou ênfase aos trabalhos modernistas. Quantos sabem quem foi a ama de leite que inspirou A negra, 1923, de Tarsila do Amaral? E, mais ainda, quais as relações histórico-sociais entre a modelo e a pintora? Ou, quem foi Zulmira? Além de ser a dona do perfil pintado por Lasar Segall, qual seu contexto histórico? Talvez, sob nova perspectiva, a partir do exercício proposto por Lafont, acrescentem-se novas ideias e reflexões sobre a história da arte e, particularmente, sobre as relações de gênero e raciais que permeiam o “objeto arte”.

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