Intervenção artística expõe o que mulheres não querem mais calar

Instalada na Biblioteca Mário de Andrade, “Cala a Boca Já Morreu!” traz 101 frases na voz de mulheres

 17/06/2021 - Publicado há 3 anos
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Cala a Boca Já Morreu! foi inaugurada no dia 14 de junho e fica em cartaz até 14 de julho na fachada da Biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo – Foto: Divulgação/Ana Teixeira

 

“Eu não vou me calar.” “Por que minha liberdade te incomoda?” “Quem manda na minha vida sou eu.” “Eu quero ser protagonista da minha história.” “Meu corpo não é público.”

Ecoadas pelas vozes de 101 mulheres, frases como essas podem ser escutadas nas proximidades da Biblioteca Mário de Andrade, na Rua da Consolação, em São Paulo. A intervenção visual e sonora Cala a Boca Já Morreu!, inaugurada nesta última segunda-feira, dia 14, é um trabalho da artista visual Ana Teixeira, ex-aluna de graduação e mestrado da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. A frase-título do projeto estampa a fachada da biblioteca e, no jardim, 16 caixas de som funcionam todos os dias, das 10 às 18 horas.

O trabalho teve início em 2019, quando Ana Teixeira, a partir da pergunta “O que você não quer mais calar?”, recolheu depoimentos de 101 mulheres em quatro locais: o Centro Universitário Maria Antonia da USP, a Ocupação 9 de Julho, a Casa das Rosas, na Avenida Paulista, e também em Colônia, na Alemanha, a convite da Universidade de Colônia. 

A artista conversa com outras mulheres para realizar o projeto – Foto: Divulgação/Ana Teixeira

 

Na época, a artista visual estava se aprofundando em temáticas ligadas ao feminismo, questão que sempre esteve presente em sua vida, através de leituras teóricas. Logo, decidiu que faria um trabalho com mulheres, também motivada por movimentos feministas que aconteceram na internet nos últimos anos, como o #MeToo (“Eu também”, em português) e o #PrimeiroAssedio. “A frase ‘cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu’ é muito comum no interior, na minha geração. Eu sempre gostei dela e pensava em fazer um trabalho com a frase um dia”, diz Ana. O ditado popular combinou com a ideia da artista. “Pensei que essa era uma frase própria para as mulheres.”

Ana conta que, por vezes, as conversas se transformaram em rodas de discussão entre várias mulheres, que se identificavam com as respostas umas das outras. “A maioria das queixas era em relação ao patriarcado, ao machismo, aos homens. São pouquíssimas as frases que não falam sobre isso”, afirma Ana. “Inclusive em Colônia, onde eu achava que isso não iria acontecer, por pensar que talvez fosse diferente na Europa. Mas as questões do assédio no espaço público e do corpo feminino foram muito semelhantes.”

Foto: Divulgação/Ana Teixeira

Segundo a artista, seu trabalho sempre foi marcado pelo ativismo, buscando fornecer uma forma de escuta no espaço público, que provoque as pessoas a pensar. “Isso ficou mais claro neste trabalho, porque foi sobre dar voz às mulheres que estão pelas ruas e que querem muito falar”, reflete Ana. “Pela primeira vez aconteceu uma ação coletiva, o que não costuma acontecer nos meus trabalhos. Sempre falava com uma pessoa por vez: troco sonhos por sonhos, escuto histórias de amor, ofereço uma outra identidade, por exemplo.” Ela conta que, desta vez, enquanto conversava com uma mulher, chegavam outras, que eram convidadas a se sentar e participar da discussão.

“Depois de conversar com cada uma individualmente, nós chegávamos juntas a uma frase. Eu pedia para a pessoa segurar um cartaz com a frase, pensando com que corpo ela queria dizer aquela frase. É um corpo de luta? É um corpo passivo? Algumas sorriam, a maioria fazia cara de brava, e de que aquilo era uma coisa que importava gritar”, relata Ana. Nessa primeira fase, mais da metade das mulheres fotografadas com suas frases foi transformada em desenhos, feitos pela artista nas paredes do Centro Universitário Maria Antonia e no Museu de Arte Brasileira (MAB) da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap). 

Participantes da intervenção artística – Fotos: Divulgação/Ana Teixeira

 

“Quando fui convidada para fazer uma intervenção na fachada da Biblioteca Mário de Andrade, resolvi resgatar essas 101 frases das mulheres com quem conversei em 2019, e convidar outras 101 mulheres para lerem as frases”, explica. As vozes emprestadas são de pessoas do grupo de contato de Ana, entre conhecidas, amigas e mulheres que se interessam pela temática. “Convidei um grupo bem variado. Mulheres de grupos feministas, mulheres trans, travestis. Procurei gente de outros Estados, para ter outros sotaques. Também fiz questão de colocar 16 funcionárias da biblioteca. Foi uma alegria poder contar com as vozes delas”, afirma a artista. 

Para ela, dar voz às frases trouxe força à leitura. Ana, que já fez trabalhos anteriores com instalações sonoras, diz gostar muito do recurso. Por isso, diante do espaço físico limitado que tinha disponível para a intervenção na biblioteca, chegou à ideia de caixas de som em pedestais. “Ficou como um exército de novo, o mesmo batalhão de mulheres que desenhei no Maria Antonia e no MAB. Elas estão em pé, olhando para a rua, e ressoam as 101 vozes. Ficou potente”, observa a artista.

Cala a Boca Já Morreu! segue a linha de trabalho de Ana, que preza pelo contato com o humano em sua arte. “Acho que a arte pode ser a possibilidade de encontro de um sujeito com ele mesmo, seja através do contato com uma pintura, em um museu, seja no espaço público. Sempre gostei de estar nesse espaço, de levar a arte para lugares não privilegiados ou não feitos para ela”, afirma a artista.

Fachada da exposição – Foto: Divulgação/Ana Teixeira

 

O gosto pelo uso da palavra é outro elemento que aparece nesse projeto. “A palavra está presente nos meus desenhos, filmes e ações”, diz Ana. “Meu mestrado na ECA foi sobre esse trabalho de intervenções no espaço público e, durante ele, ficou claro para mim que quanto mais complexas eram as perguntas que eu fazia, mais forte era a viagem interior do meu interlocutor. As respostas eram mais elaboradas.” Por isso, em Cala a Boca Já Morreu!, resolveu fazer uma pergunta invertida. “Em vez de ‘o que você quer gritar?’, perguntei ‘o que você não quer mais calar?’. E foi uma boa sacada, porque, como a pergunta é no negativo, gerava reflexões”, revela Ana.

A palavra feminina e feminista

Foto: Divulgação/Ana Teixeira

Como extensão do trabalho de intervenção, Ana está desenvolvendo uma pesquisa no acervo da Biblioteca Mário de Andrade a partir de 33 livros de temática feminista, escritos por mulheres e lançados entre 2010 e 2020. Frases relacionadas ao silenciamento feminino são separadas por Ana e publicadas no perfil da artista no Instagram. Para ela, é uma forma de “cutucar as pessoas a irem atrás daquelas leituras”, e as redes sociais são um bom instrumento para reverberar tais vozes femininas.

Ao fim da pesquisa, será produzida uma publicação para reunir os trechos dos livros, e que também incluirá um histórico do trabalho, com alguns dos desenhos da primeira fase de Cala a Boca Já Morreu! e um texto crítico da professora da Faap e curadora do Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE), Galciani Neves. “Vai servir como um índice remissivo, uma espécie de inventário, à disposição de quem queira fazer uma pesquisa, por exemplo”, diz Ana. “É pouco, perto do tamanho do acervo da biblioteca, mas já é algum encaminhamento possível, e também uma maneira de dar voz a esses livros que estão silenciados pelas restrições da pandemia”, completa a artista. 

A intervenção Cala a Boca Já Morreu! fica exposta até 14 de julho na fachada da Biblioteca Mário de Andrade, na Rua da Consolação, 94, centro, em São Paulo. A parte sonora funciona todos os dias, das 10 às 18 horas.

 


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