Bolsa Família ou Renda Brasil

“A renda importa, mas o sujeito da ação, aquele que trabalha e produz a renda, é uma pessoa”

 21/08/2020 - Publicado há 4 anos

Por Janice Theodoro da Silva

 

 

Fotomontagem/Jornal da USP

O nome de uma pessoa, na nossa cultura, é expressão de sua individualidade. Os pais de uma criança escolhem um nome para qualificá-lo em meio a outras crianças. Muitas vezes se repete um nome na família para homenagear alguém ou para criar a sensação de, por meio do nome, garantir a perenidade de uma pessoa ou de uma família, cuja memória se pretende reter no tempo. Apesar dos esforços, na nossa sociedade, a luta pela identidade, pela necessidade de diferenciação é grande. Frequentemente, em razão do sucesso de alguns, os genitores repetem o primeiro nome do personagem bem-sucedido em algum descendente. Em geral, a repetição do primeiro nome prejudica mais do que ajuda, porque a criança já nasce com uma carga, com uma pesada herança nem sempre adequada aos seus próprios desejos e fantasias. Já o sobrenome, o nome da família de origem, pode ajudar na montagem da identidade da família ou do grupo no qual se fundam as origens (variadas).

Projetos levados à frente por governos têm origem, pais fundadores. Mudar o nome de Bolsa Família para Renda Brasil é uma forma de diferenciar, omitir a paternidade, criar uma outra desprovida de história. Falar em Bolsa Família corresponde a valorizar mentalmente a ideia de pessoas vinculadas por laços afetivos, com formação inacabada, necessitando de apoio para enfrentar os desafios da sociedade de origem. Bolsa Família envolve a ideia de esperança no futuro, a ideia de criar condições mínimas para formar e educar melhor as crianças brasileiras, para que elas construam e usufruam de um Brasil e de um mundo melhor.

Significados das palavras

A palavra “bolsa” geralmente é empregada para o recebimento de um apoio financeiro, público ou privado, para um estudante desenvolver atividades escolares ou de pesquisa. A finalidade da bolsa é estimular a formação do estudante para a obtenção de uma vida melhor.

A palavra “família” tem diferentes significados, dependendo da cultura à qual se refere. Pode indicar a presença de vínculo entre pessoas de natureza variada, vínculos biológicos, afetivos ou legais, entre outros.

A palavra “renda” em geral se faz acompanhar de um complemento: renda pessoal, da terra, fundiária, fixa, variável, mínima, nacional, per capita, real, diferencial, presumida, entre outros. A renda pessoal é aquela recebida por uma pessoa na forma de salário, remuneração por serviços prestados, lucro, juro ou aluguel. As definições de renda são complexas, variando seus significados segundo os autores e as épocas em que o tema é discutido.

A palavra “Brasil” indica um território de 8.516 mil quilômetros quadrados, o maior país da América do Sul em dimensões territoriais, com 209,5 milhões de habitantes, a maior parte falante do português. A população indígena, segundo o IBGE, é de 996.917 pessoas (0,47% da população total). Parte delas, especialmente os moradores em terras indígenas, mantém suas próprias línguas. São 274 as línguas faladas por eles no Brasil.

Por que optar por mudar, de Bolsa Família para Renda Brasil, o nome do programa que beneficia mais de 13,5 milhões de brasileiros?

Falar em Renda Brasil pressupõe valorizar mentalmente o dinheiro recebido por um indivíduo em forma de salário, remuneração por serviços prestados, lucro, juro, aluguel. Trata-se de dar valor àquilo que é produzido e não a quem produz. O sujeito da ação é a renda. É a renda, o dinheiro, o lugar daquilo que se valoriza e, por consequência, quem tem dinheiro vale muito, e quem não tem vale pouco.

A mudança do nome do programa sugere que devemos valorizar mais as pessoas ou a renda? Qual a imagem que todos nós precisamos ter em mente para produzir um mundo melhor? A imagem de gente ou do dinheiro?

A pergunta que surge em seguida é: as duas coisas (família e renda) não caminham juntas?

Sim, caminham, mas o sujeito, no meu modo de ver as coisas, deve ser o ser humano provido de razão, ciente de seu papel na preservação do planeta (homens, animais, florestas e água), e não a renda, produto do trabalho dos homens. São os homens os agentes da transformação, para o bem ou para o mal. A renda importa, e importa muito, mas o sujeito da ação, aquele que trabalha e produz a renda, é uma pessoa.

A minha esperança é imaginar os seres humanos nascidos no Brasil e em outras partes do mundo com uma renda maior. Mas o sujeito da ação são os homens e as mulheres. Como humanista, prefiro o nome Bolsa Família a Renda Brasil porque pressupõe, como agentes, as pessoas. Não vamos deixar o humanismo morrer. A escolha das palavras é o primeiro passo para a construção de um mundo um pouco, um pouquinho melhor.

P.S. É simples, existe muita gente boa sem renda e muita gente ruim com muita renda. Cuidado.

Janice Theododo da Silva é professora titular aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 


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