Brexit: a ilusão de uma volta aos tempos do império

Por Luiz Roberto Serrano, jornalista e superintendente de Comunicação Social da USP

 03/02/2020 - Publicado há 4 anos     Atualizado: 04/02/2020 as 16:51
Luiz Roberto Serrano -Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Na sexta-feira, 31 de janeiro, assistimos aos ingleses conservadores comemorando a concretização formal do Brexit. Celebravam o que, para eles, conservadores, será a liberação das amarras da União Europeia. Vencido o ano de negociações que ainda há pela frente, o Reino Unido, na visão dos conservadores, flanará livre e de acordo com seus próprios desígnios por este mundo globalizado e cada vez mais complexo. Esqueceram da história, especialmente da de seu país, e dos desafios que a economia globalizada põe à sua frente.

Em 4 de junho de 1940, com a Segunda Guerra Mundial em andamento havia nove meses, o recém-nomeado primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, assinalou, em um de seus discursos perante a Câmara dos Comuns, que o Reino Unido não tinha fôlego para enfrentar sozinho o desafio nazista que o ameaçava a partir do outro lado do Canal da Mancha, a partir da França já dominada.

Suas célebres palavras: “E, mesmo se esta ilha ou grande parte dela seja ocupada e fique sem alimentos – o que eu em nenhum momento acredito que aconteça- então nosso Império de além-mar, armado e protegido pela frota britânica, vai levar a luta adiante, até que no tempo aprazado por Deus, o novo mundo, com todo a sua riqueza e poderio, se lance na guerra para resgatar e liberar o velho mundo”.

Era uma súplica pública para que os Estados Unidos saíssem em socorro da Grã-Bretanha e da Europa Ocidental invadida pela Alemanha. Um reconhecimento, imposto pelas dramáticas circunstâncias da guerra, de que a Grã-Bretanha já não tinha o poder de outrora, quando o Império regulava o mundo. Mas boa parte de sua população nunca se conscientizou de que os tempos eram outros.

A União Europeia é produto da Segunda Guerra Mundial.

Qual seria o futuro dos países da Europa Ocidental diante da potência econômica demonstrada pelos Estados Unidos ao fim do conflito e da Rússia construindo a União Soviética, cujas fronteiras abarcavam a porção oriental do continente e chegavam até a metade da, ainda em reconstrução, Alemanha?

Em resposta, a Alemanha Ocidental e a França, cansadas de guerras, lançaram a Comunidade do Ferro e do Aço, a primeira semente da união, que avançou ao longo das próximas décadas com a adesão de mais e mais países da região, até chegar a uma moeda comum, o euro, nos anos 1990. A União Europeia ganhava fôlego econômico para ocupar espaço relevante na economia mundial que, paulatinamente, se globalizava. Hoje, ainda contabilizando a Grã-Bretanha, responde por algo como 23% do PIB mundial.

Claro, não foi uma tarefa fácil reunir, nem é fácil manter, sob uma mesma comunidade, 27 países, sociedades, culturas, tradições, línguas diversas. O Reino Unido tardou a entrar no bloco. O presidente francês, Charles de Gaulle, vetou a entrada do país vizinho. Para ele, a entrada da Grã-Bretanha azeitaria a presença dos Estados Unidos nos mercados europeus, uma concorrência que ele não desejava.

Com De Gaulle fora de cena, a Grã-Bretanha foi admitida em 1973, mas com reações internas desfavoráveis, especialmente de sindicatos de trabalhadores ingleses e dos saudosistas das glórias do Império. A ponto do governo britânico submeter a entrada a um plebiscito em 1975, quando a permanência foi aprovada por larga margem, 67,5% dos votos. Nos anos 1970, a economia britânica precisava se fortalecer e a entrada na União Europeia apontava nessa direção.

Os britânicos aderiram, mas colocaram uma série de exigências na mesa de negociações. Obtiveram regalias em matéria de segurança e direitos sociais e mantiveram a sua moeda, a libra esterlina, que não se diluiu no euro. Também não faziam parte do Espaço Schengen, que permite a livre circulação de cidadãos na UE.

Foi a fórmula para manter algum poder de decisão própria para a Loura Albion, diante da miríade de regulamentos, normas e políticas exarados diretamente de Bruxelas e do Parlamento Europeu. Ao fim dos 47 anos de inclusão na União Europeia, 45% das exportações britânicas se destinam à União Europeia, ao mesmo tempo que 53% das importações vêm de lá. Bom resultado, não? Mas que terá que ser renegociado, item por item, ao longo deste ano, talvez para pior, em função das barreiras alfandegárias que serão erguidas.

O premier Boris Johnson fala em conduzir as futuras relações com a União Europeia “como amigos e soberanos iguais”. Diz que “o momento é de mudança e renovação nacional”. Mas também terá que encarar o descontentamento da Escócia e da Irlanda, que desejavam continuar no bloco europeu e ameaçam movimentos separatistas.

No campo econômico, Boris promete construir um vantajoso acordo comercial com os Estados Unidos, estimulado por Donald Trump, reforçando a histórica dependência do país norte-americano. Promete também construir acordos comerciais ao redor do mundo. Enfim, a economia britânica, a sétima do mundo, com um PIB no valor de US$ 2,7 trilhões, vai à luta por si só. O quanto funcionará, num mundo polarizado entre Estados Unidos e China? E com a Rússia e a própria União Europeia na parada.

Quem viver verá. Mas os prognósticos não são otimistas.

É instrutiva uma comparação entre as condições econômicas e sociais em que se realizaram os dois plebiscitos, o de 1975 e o último. Relata o jornalista Rafa de Miguel, do El País:

“O referendo organizado pelo governo trabalhista de Harold Wilson em 1975 para confirmar a entrada na então Comunidade Econômica Europeia dois anos antes dividiu o país tanto quanto o Brexit. Até o último minuto, as pesquisas previam uma vitória esmagadora do ‘não’. E, como agora, a principal preocupação dos cidadãos era a suposta perda de soberania nacional, exercida por um então reverenciado Parlamento britânico”.

Rafa de Miguel continua: “Somente o enorme poder e capacidade de propaganda do Departamento de Pesquisa do Ministério das Relações Exteriores, de um movimento europeu que na época era influente e, sobretudo, da BBC, conseguiram reverter essa situação. Os argumentos, em um tom eminentemente prático, eram os mesmos que seriam ouvidos meio século depois. Mas, então, não havia redes sociais, e os cidadãos davam crédito aos especialistas e ao que as instituições defendiam. O referendo do Brexit em junho de 2016 inaugurou a era das fake news e foi realizado em meio a um desencanto geral da população com seu sistema político, após anos de austeridade imposta pela crise financeira. Conseguiu desestabilizar o delicado equilíbrio sentimental com a Europa de um país que nunca esqueceu sua condição de ilha e de nação supostamente excepcional”(fim da citação).

Ah, as fake news… esse subproduto indesejável das mídias sociais, cujo potencial de desinformação e desagregação aumenta exponencialmente em momentos de crise social, política e econômica… Seus efeitos são deletérios. Como enfrentá-las, conviver com elas, superá-las?

Democraticamente, é claro.

 


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