Peça expõe o que é ser negro na periferia de São Paulo

Livro baseado em “Farinha com Açúcar” será lançado nesta quarta-feira, dia 15, às 20 horas, no Teatro da USP

 13/08/2018 - Publicado há 6 anos
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Obra do dramaturgo Jé Oliveira presta tributo ao grupo de rap Racionais MC’s, que constitui um fator de conscientização do negro sobre sua condição racial, poder de resistência, luta e revide – Foto: Divulgação / André Murrer

“Eu durmo pronto pra guerra e eu não era assim/ Eu tenho ódio e sei o que é mau pra mim/ Fazer o que se é assim, vida loka cabulosa/ O cheiro é de pólvora, e eu prefiro rosas/ E eu que… e eu que sempre quis um lugar/ Gramado e limpo, assim, verde como o mar/ Cercas brancas, uma seringueira com balança/ Disbicando pipa, cercado de criança” (Mano Brown). Inspirada em relatos reais e na produção cultural de 12 homens negros, a peça-show Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens – que em 2017 recebeu o 6º Prêmio Questão de Crítica – dialoga com a obra do grupo brasileiro de rap Racionais MC’s para fazer pensar sobre a condição do negro na sociedade brasileira.

Criada em 2016 pelo diretor, ator e dramaturgo Jé Oliveira e encenada pelo grupo Coletivo Negro, a peça já foi vista por mais de 15 mil pessoas e agora é transformada em livro homônimo, que será lançado nesta quarta-feira, dia 15 de agosto, às 20 horas, no Teatro da USP (Tusp). O lançamento acontece em comemoração aos 30 anos de fundação do Racionais MC’s e aos dez anos do Coletivo Negro. No evento, serão lidos trechos da obra pelo poeta Akins Kintê, pelo historiador e dramaturgo Allan da Rosa, pelo cantor, compositor e roteirista Aloysio Letra, pelo pesquisador de cultura popular Renato Ihu e pelo vendedor de livros conhecido como “Seu Luís Livreiro”, cinco dos 12 homens que inspiraram a trama. Entre os entrevistados estão ainda o DJ KL Jay, do Racionais MC’s, e Zinho Trindade, bisneto do poeta Solano Trindade.

São duas as unidades encontradas nas entrevistas, relata Jé Oliveira. “A morte e a música, esta última relatada por pelo menos oito dos 12 entrevistados como a principal responsável por uma consciência social e uma capacidade e necessidade de revide. Eles citavam dois momentos culturais: o funk dos anos 70, com James Brown, Marvin Gaye e Parliament Funk, e o rap do Racionais MC’s, que é herdeiro dessa musicalidade. Além disso, na minha trajetória, o Racionais MC’s também foi o principal disparador de uma consciência social. Por isso fazia sentido passar em revista a sua obra.”

A peça e o livro integram o projeto A Concretude Material do que Somos: Espaços, Ritos e Humanidades, contemplado na 29ª edição da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. “O objetivo era investigar a construção da identidade negra, verificando como, politicamente, uma pessoa se afirmava como negra e quais eram os recursos simbólicos”, afirma o diretor. O projeto também inclui um CD, em fase de finalização, com o texto e as músicas da peça – o disco conta com a participação do DJ KL Jay e tem mixagem do cantor e produtor musical Lino Krizz, parceiro de Mano Brown. “É uma audiopeça, na qual você pode ouvir todo o espetáculo”, informa o diretor, avisando que o lançamento está previsto para setembro, além de ressaltar que o livro e o CD cumprem a função de registrar os empenhos artísticos, sobretudo sobre as questões raciais. “Há uma carência nessa área em relação à pesquisa dos meios de produção, por isso resolvemos registrar tanto o texto como a trilha.”

Peça-show em dois atos

Jé Oliveira: “Sim, estamos morrendo e não é de hoje” – Foto: Divulgação / André Murrer

“Uma sala de ensaio vazia, as músicas do Racionais MC’s, um texto e um autor-ator.” Esse foi o início de tudo, como conta o diretor no livro. “De modo sintomático, a peça começa tratando da experiência da morte, uma espécie de reversão simbólica do ato de existir: a vida como a construção do cadáver. Sim, estamos morrendo e não é de hoje”, escreve. “A peça-show se estrutura em dois atos, assim como a organização do CD duplo Nada Como um Dia Após o Outro Dia (2002), do Racionais MC’s. De modo ostensivo, o primeiro ato, ‘Morrendo’, dialoga com o tema geral do primeiro CD, Chora Agora, e o segundo ato, ‘Sendo’, com o tema geral do segundo CD, Ri Depois”, compara o músico e professor do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP Walter Garcia, no Prefácio do livro. “

“Primeiro o homem negro precisa se livrar da morte, até uma determinada faixa de idade, principalmente e, sobretudo, do assassinato via Polícia Militar do Estado de São Paulo”, afirma Jé Oliveira ao Jornal da USP. “Quando não se mata-morre nos corredores dos hospitais, é na rua, nos bares, nas vielas ou nos becos que se escuta o espetáculo”, informa o professor, citando três canções que integram esse ato: Hábito Onde Habito (música e letra de Jé Oliveira), Gira pro Sol (música de Charles Razi e letra de Jé Oliveira) e Dor que Dura a Cana não Cura (música de Gabriel Longhitano e letra de Jé Oliveira).

Segundo o diretor, a peça inverte a vida. Ela começa na morte para chegar à vida. “O segundo ato, ‘Sendo’, é quando a vida começa a acontecer com esse narrador, que vai construindo sua identidade e se afirmando”, diz Jé Oliveira. É também a construção da vida possível pela imersão em uma cultura musical, como lembra o professor Walter Garcia: “Mas é preciso atentar para um dado importante: a vivência nessa cultura musical se mistura ao revide violento de quem ‘cansou de ser ingênuo, humilde e pacato/ encapuzou, virou bandido e não deixa barato’ (Otus 500, de Edy Rock, em Ri Depois, de Nada Como um Dia Após o Outro Dia)”.

O livro com o texto da peça Farinha com Açúcar – foto: Reprodução

Com duração de 1h50, a peça, além de ter uma banda em cena, possui uma estrutura de show, com abertura, apresentação da banda, números musicais e finalização, daí ser chamada de peça-show. E tudo acaba em festa, com a coletividade negra reunida em uma celebração da vida – mais precisamente, como escreve o professor Garcia, na apresentação de sonoridades exemplares da música negra, formando uma constelação: James Brown, The Jackson Five, Earth, Wind & Fire, Parliament Funkadelic, Hildon, Cassiano, Jorge Bem, Tim Maia e Racionais MC’s. E Garcia conta que, quando teve a sorte de participar dessa festa (no lado da plateia), sentiu “que transfigurar a dor em alegria, a humilhação em orgulho não é necessariamente um engodo publicitário (como tantos que embalam mercadorias sem valor): realizada com verdade, essa transfiguração nos faz viver”.

O lançamento do livro Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens (Editora Javali, 70 páginas, R$ 30,00) acontece nesta quarta-feira, dia 15 de agosto, às 20 horas, no Teatro da USP (Tusp), localizado na Rua Maria Antonia, 294, Vila Buarque, em São Paulo. Entrada grátis. O livro pode ser adquirido no Facebook da editora.  Mais informações podem ser obtidas neste link


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