Mobilidade humana: o mito da invasão da Europa

Deisy Ventura – IRI/FSP

 29/04/2016 - Publicado há 8 anos     Atualizado: 02/05/2016 as 15:03

“O atual fluxo de refugiados em direção à Europa tem repercussão desproporcional à dimensão global do fenômeno”

artigo Deisy Ventura Foto: Iri/USP
Deisy Ventura é professora do Instituto de Relações Internacionais (IRI) e da Faculdade de Saúde Pública (FSP), ambos da USP.
Aliberdade de circulação internacional de pessoas, considerada como uma das principais características da globalização econômica, é exercida de modo assimétrico no mundo contemporâneo. Segundo a Organização Mundial do Turismo, cerca de 1,1 bilhão de turistas realizam viagens internacionais a cada ano. No entanto, estima-se que mais de dois terços da população do planeta permaneçam absolutamente sedentários, por falta de recursos materiais ou de rede de contatos que permita seu deslocamento. Ao contrário do que prometeu a globalização econômica, mover-se é uma liberdade mal distribuída.

Em geral, a expressão “mobilidade humana” abarca as migrações internacionais, compreendidas como a saída voluntária de uma pessoa (migrante) do território do seu Estado de origem, sendo sua motivação complexa e diversa, e os deslocamentos forçados, em especial o refúgio, que corresponde ao ingresso de uma pessoa (refugiado) em território distinto do seu Estado de origem. No entanto, as categorias clássicas dos estudos sobre migrações hoje se encontram prejudicadas, pois muitas pessoas pertencem a mais de uma categoria, ao mesmo tempo ou ao longo de sua vida.

Quando se trata da radicação em um país para fins de residência temporária ou definitiva, há atualmente um direito de saída praticamente generalizado, enquanto o direito de entrada é raramente reconhecido. Mas as dificuldades de acesso a direitos não têm causado a diminuição dos fluxos migratórios.

Em 2013, o número de migrantes internacionais foi estimado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 232 milhões de pessoas ou 3,2% da população mundial, não havendo alterações significativas desse porcentual desde 1995. Estima-se que 130 milhões de pessoas tenham partido do Hemisfério Sul ao Norte e de um país a outro do Norte e 110 milhões do Norte ao Sul e de um país a outro do Sul. As políticas migratórias restritivas predominam nos países desenvolvidos.

Os países e regiões em desenvolvimento – entre eles, Turquia, Paquistão, Líbano e Irã – acolhem 86% dos refugiados 

Nos países em desenvolvimento, em geral, não há restrição de ingresso, mas a ausência de políticas migratórias eficientes produz efeitos equivalentes aos das políticas restritivas. A facilidade de cruzar fronteiras porosas é sucedida por uma grande dificuldade de obter a regularização migratória, favorecendo a precarização das condições de trabalho e dificultando a inclusão social e econômica dos migrantes. É o que ocorre, por exemplo, nos países do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

Nos últimos quatro anos, a persistência ou o agravamento de conflitos armados causou o aumento vertiginoso dos deslocamentos forçados. Ao final de 2014, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), havia no mundo 59,5 milhões de deslocados forçados, em sua maioria em decorrência de conflitos armados, entre eles 19,5 milhões de refugiados, 38,2 milhões de deslocados internos e 1,8 milhões de solicitantes de refúgio, tendo a apatridia – a ausência ou perda de vínculo de nacionalidade com um Estado – afetado pelo menos 10 milhões de pessoas.

A Síria gerou o maior número tanto de deslocados internos (7,6 milhões) quanto de refugiados (3,88 milhões), seguida por Afeganistão (2,59 milhões de refugiados) e Somália (1,1 milhão de refugiados). Os países e regiões em desenvolvimento acolhem 86% dos refugiados. Entre eles, Turquia, Paquistão e Líbano abrigam atualmente 30% dos refugiados do mundo, seguidos por Irã, Etiópia, Jordânia e Quênia. Em julho de 2015, a Turquia acolhia 1,8 milhão de refugiados sírios, enquanto 1,1 milhão encontrava-se no Líbano.

Esses dados demonstram que o atual fluxo de migrantes e refugiados em direção à Europa, embora ascendente, tem merecido uma repercussão política desproporcional à dimensão global do fenômeno, gerando a falsa ideia de que o “problema” da migração e do refúgio concerne principalmente ao mundo desenvolvido.

A mídia nos faz crer que a Europa é a maior vítima da mobilidade humana. Temos que denunciar essa impostura 

Eles deveriam se beneficiar tanto do direito dos refugiados como do direito humanitário, mas Estados importantes, que outrora foram paradigmas no campo da democracia e dos direitos humanos, hoje violam de forma flagrante os tratados internacionais que no passado auspiciaram. A legislação de alguns Estados considera crime ajudar pessoas em situação migratória irregular, o que chamamos de “delito de solidariedade”. Cresce o número de países e regiões a adotar o confisco dos bens de migrantes e refugiados quando do ingresso em seu território, inclusive joias de família.

Restringir os direitos dos migrantes aumenta sua vulnerabilidade, enquanto reconhecer esses direitos facilitaria a integração e preveniria custos sociais a longo prazo, contribuindo assim para o desenvolvimento econômico e social dos países de acolhida.

Na Europa de hoje, a migração e o refúgio são apresentados como fontes de temores e ameaças, justificando a inclusão preferencial do tema da mobilidade humana nas agendas de segurança nacional e internacional. A despeito das políticas de austeridade, os países europeus investem cada vez mais no controle de fronteiras, que compreende investimentos em centros de detenção, armas e pessoal de segurança, além da construção de muros em diversos países.

Ora, o investimento em segurança está fadado ao fracasso, pois as causas da migração massiva só tendem a crescer, principalmente os conflitos armados, a escassez de recursos, os danos ao ecossistema e o colapso econômico de alguns Estados. Ademais, combater a entrada e não as causas de seu deslocamento, com as quais diversos países da Europa estão, aliás, profundamente envolvidos, implicam a morte e o sofrimento de milhares de pessoas. Enquanto isso, os meios de comunicação nos fazem crer que a Europa é a maior vítima da mobilidade humana. Sobretudo a nós, na Universidade, cabe a tarefa de denunciar essa impostura.

 


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