Professores da USP debatem legado do Teatro Brasileiro de Comédia

Encontro acontece nesta quarta-feira, dia 30, às 16 horas, na Biblioteca Mário de Andrade

 28/05/2018 - Publicado há 6 anos
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Fachada do antigo Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), na Rua Major Diogo, bairro da Bela Vista, região central de São Paulo – Foto: Guilherme Afarelli Venaglia via Wikimedia Comuns / CC BY-SA 4.0

Era uma vez uma metrópole que sonhava ser o futuro. Uma cidade que crescia galopando fumaça, concreto e desigualdade, arrancando sua significância através da economia e da cultura. Derrotada na Revolução Constitucionalista de 1932, São Paulo abria picadas na mata da modernidade mobilizando um parque industrial em ascensão e orquestrando um xeque-mate artístico e intelectual. Empenhada em solapar a influência da capital Rio de Janeiro, mas, sobretudo, se sentar à mesa do banquete civilizatório da contemporaneidade.

No tabuleiro cultural, um punhado de empresários e industriais, o grupo em ascensão que varreu a elite cafeicultora e sentou-se no trono do poder, baixava suas cartas em apostas tão ousadas quanto diversificadas. A Universidade de São Paulo nasceu em 1934, gestada na redação do jornal O Estado de S. Paulo. Assis Chateaubriand fundou as bases do Museu de Arte de São Paulo (Masp) em 1947. Ciccillo Matarazzo encabeçou a criação do Museu de Arte Moderna (MAM), que se materializou em 1949.

Coube a um engenheiro italiano das indústrias Matarazzo, nesse quebra-cabeça do mecenato paulista, a cruzada pela modernização do teatro nacional. Celebrado e difamado, combatido e revisado, não se pode falar da história das artes cênicas no País sem iluminar a trajetória do Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, surgido das ideias e do dinheiro de Franco Zampari.

A professora Maria Arminda do Nascimento Arruda – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

A glória e a derrocada do TBC voltam à cena nesta quarta-feira, dia 30 de maio, na Biblioteca Mário de Andrade. Com apresentação do professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Ferdinando Martins, acontece o debate TBC – História e Permanência de um Marco do Teatro Moderno Brasileiro. Juntam-se à discussão as professoras Elizabeth Azevedo, também da ECA, e Maria Arminda do Nascimento Arruda, diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. O jornalista e crítico teatral Jefferson Del Rios completa a lista de convidados. Estruturado em dois encontros – o primeiro aconteceu em 23 de maio –, o debate tem participação gratuita.

Organizado pela Associação de Amigos do TBC e do Teatro Brasileiro, o evento transcende o saudosismo: é uma chamada de atenção para o abandono vivido pelo histórico edifício que sediou a companhia, virou palco para montagens de outros grupos após seu fim e hoje é propriedade da Funarte. Tragado por uma reforma interminável, o prédio está fechado desde 2007, lacrando também a memória do TBC.

Seara da modernidade

Instalado por Franco Zampari, em 1948, no número 315 da Rua Major Diogo, bairro da Bela Vista, o TBC revolucionou o teatro brasileiro. É um fato, quer se aprecie ou não seu legado. A companhia não foi a única personagem dessa saga, que viu nascer também o Grupo de Teatro Experimental de Alfredo Mesquita, em 1942, embrião da Escola de Arte Dramática (EAD), e o Grupo Universitário de Teatro, oriundo da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e liderado por Décio de Almeida Prado e Lourival Gomes Machado, em 1943. O TBC foi, entretanto, com certeza o protagonista.

Professora Elizabeth Azevedo – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Todas essas iniciativas renegavam o teatro profissional da época, dependente do culto ao ator principal e seu carisma, alicerçado em textos pouco elaborados e montagens baratas e descartáveis, nas quais a satisfação fácil do público comandava o espetáculo. Nesse combate, o TBC emergiu com novos conceitos de profissionalismo no cenário nacional, com textos de qualidade, montagens lapidadas e ênfase na formação do ator.

Essa é a ideia que a crítica de teatro e professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) Tania Brandão defende em sua contribuição na coletânea História do Teatro Brasileiro. “Para os bons moços, ilustrados e educados capitães da onda moderna”, escreve, “o inimigo principal era o teatro do primeiro ator, de hierarquia e convenções, dos telões e gabinetes, um lugar em que a arte era reduzida à habilidade do intérprete para encantar e seduzir a plateia de fãs.”

A vida do TBC durou 16 anos, de 1948 a 1964. Pelo seu palco passaram 144 peças, vistas por quase 2 milhões de pessoas. Em sua investida modernizadora, apostou na valorização do encenador. A figura do diretor ganhou substância e adquiriu estatura artística, solapando o mero papel de ensaiador a que era condenada até então. Para implementar esse novo paradigma, Zampari cercou-se de europeus, entregando a direção dos espetáculos para nomes que se tornariam verbetes obrigatórios em compêndios do teatro brasileiro. Materializaram suas visões no palco do TBC Ziembinski, Adolfo Celi, Gianni Ratto, Ruggero Jacobi, Maurice Vaneau, Luciano Salce, Flaminio Bollini e Alberto D’Aversa.

“Era necessário encontrar líderes e um novo exército”, escreve Tania. “O líder aclamado como um semideus era o encenador, então chamado diretor, uma autoridade nova capaz de impor o espetáculo como conceito, quer dizer, a encenação, e reduzir os atores, os monstros sagrados de um pouco antes, à dimensão de porta-vozes do autor, entidade que o encenador devia transmudar em essência da cena. O novo exército era uma nova classe teatral, que deveria ser recrutada ou formada.”

Deixavam aos poucos o palco os grandes nomes do passado e ganhava espaço uma geração vinda do teatro amador, que se formaria com a concepção de um trabalho de grupo. Estiveram sob as luzes do TBC atrizes e atores jovens que seriam celebrados como os maiores nomes da arte no País: Cacilda Becker, Fernanda Montenegro, Paulo Autran, Tônia Carrero, Walmor Chagas, Nydia Licia, Sérgio Cardoso, Cleyde Yáconis, Fernando Torres, Sérgio Britto.

Esses mesmos artistas se inspirariam no aprendizado do empreendimento de Zampari para seguir os próprios caminhos, fundando companhias a partir da passagem pelo TBC. São seus filhotes o Teatro Cacilda Becker, a Companhia Nydia Licia-Sérgio Cardoso, a Companhia Tônia-Celi-Autran e o Teatro dos Sete.

Os textos selecionados pelo grupo também traduziam o anseio pela modernização, entendida como internacionalização do repertório. Jean-Paul Sartre, Luigi Pirandello, Oscar Wilde, Tennessee Williams, Máximo Gorki são alguns dos nomes que integraram o diversificado repertório do TBC.

.Vereda do mecenato

De acordo com Maria Arminda, autora do livro Metrópole e Cultura: São Paulo no Meio Século XX, um estudo sociológico das transformações culturais da cidade pós-Segunda Guerra, Zampari moldou o TBC a partir de sua visão empresarial, exercitada como engenheiro das indústrias Matarazzo. Era típico da lógica da industrialização, salienta, o corpo de profissionais fixo e especializado e o investimento em qualificação, tanto da equipe técnica quanto dos atores.

Teatro Brasileiro de Comédia – Foto: Núcleo Editorial – Teatro Brasileiro de Comédia via Wikimedia Commons / CC BY 2.0

A estrutura material da companhia dava as provas mais imediatas das inovações pretendidas por Zampari. No prédio da Major Diogo, o TBC abrigava oficinas de carpintaria e marcenaria, espaços para confecção de cenografia e figurino e salas de ensaio, além do palco para apresentações.

Juntavam-se ao novo modelo estimativas sobre público das apresentações, patrocínio de empresas às montagens e quantidade de anúncios publicados nos programas. Com essa teia de modernização, o TBC se afastava do feitio teatral vigente no País e tornava sua linguagem compatível com os padrões internacionais.

Se a dupla investimento e inovação revela o aspecto empresarial da aventura de Zampari, o desenho completo dessa face, aponta Maria Arminda, só se completa com o entendimento do papel que o mecenato exerceu sobre essa elite industrial.

“Esse mecenato de feitio institucional”, escreve a professora, “respaldado por uma organização racionalizada e de cunho empresarial, acabou criando uma disposição que recebeu o impulso do capital produtivo, mas que se justificava no ethos da mobilização do gosto pela arte, como novo componente de poder e prestígio sociais, ainda que o resultado seja o da transformação da arte teatral.”

.Estrada do declínio

O ousado e oneroso projeto do TBC eventualmente seria esganado pela crise financeira. Dívidas se avolumaram ao longo da década de 1950, acompanhadas de baixas e renovações tanto no elenco quanto no time de diretores. Sem condições de sustentar a companhia, Zampari entrega a condução da casa em 1960. A direção artística ficou então com Flávio Rangel, primeiro diretor brasileiro a assumir o TBC.

Verbas públicas tentaram reanimar a companhia e uma virada no repertório surgiu como remédio para resgatar a audiência. Foi a fase nacionalista do TBC, com a montagem de autores brasileiros do calibre de Dias Gomes, Gianfrancesco Guarnieri e Jorge Andrade. Alguns sucessos de bilheteria e crítica animaram o grupo, mas Vereda da Salvação, de Andrade, encerrou em 1964 os trabalhos do TBC. A partir daí, foi memória, debate e nostalgia.

“Você tem um processo de sucateamento das instituições culturais”, disse Maria Arminda para o Jornal da USP. “O TBC entra em crise porque era difícil manter um empreendimento teatral daquele porte no contexto brasileiro. Era fruto do mecenato privado, e à medida em que a elite entra em declínio, a crise se instaura: essa proposta não vinga mais.”

O que também encontra seu termo é o conteúdo da modernização apascentada pelo TBC. A década de 1950 viu surgir um novo teatro, pulsante de questões políticas e comprometido com o esquadrinhamento da realidade brasileira. O Teatro de Arena passa a contar suas versões da história nacional em 1953. José Celso Martinez Correa e Renato Borghi começam os trabalhos do Teatro Oficina em 1958. O modelo elitizado e europeizado idealizado por Zampari torna-se obsoleto frente a dinamites como Eles Não Usam Black-Tie, de Guarnieri.

Em seu livro, Maria Arminda reproduz a crítica feita em 1959 por Augusto Boal, então diretor do Arena, ao modelo de teatro cujo expoente foi o TBC. “Essa elite financeira, aliada a intelectuais jovens e estudiosos”, afirma Boal, “desejava criar no Brasil um teatro que em tudo se assemelhasse e procurasse igualar os padrões estéticos então em vigor nas ‘Grandes Capitais’. Para rapidamente atingir esse objetivo, optaram pela contratação de diretores estrangeiros de categoria. Ora, cada sociedade elabora suas formas particulares de arte, teatro e interpretação, e seleciona a sua temática necessária. A nossa sociedade já era economicamente alienada: o nosso teatro tornou-se.”

Na introdução do livro TBC: Crônica de um Sonho, de Alberto Guzik, o falecido crítico de teatro e professor da ECA Sábato Magaldi resume as reprimendas dirigidas ao TBC. “As armas assestadas contra a companhia juntam várias munições”, escreve Magaldi. “Criada pelo industrial italiano Franco Zampari, ela sufocou o pobre teatro popular brasileiro, retirando-o das salas nobres; pautada por ideais artísticos europeus, instituiu uma espécie de alienação, que ia da prosódia incaracterística ao não aproveitamento regular de nossa dramaturgia; flor cosmopolita artificialmente transposta para o solo paulista, aceitou com passividade a dependência cultural do palco a modelos alienígenas.”

“No Brasil, o que se deve nomear como voga moderna durou algum tempo; persistiu até fins dos anos de 1960, início da década de 1970”, escreve Tania, da Unirio. Para a autora, é um movimento mais amplo da cultura que explica o esgotamento da modernização tal como entendida e praticada pelo TBC. “O marco de esgarçamento da tendência teria sido o tropicalismo, a disposição para aceitar a ‘tropicalidade’, digamos a pobreza, a cafonice, o transbordamento emocional, a rusticidade de meios e de construções, que arrostou o bom-mocismo nacional.”

Não é por ter sido questionado e cedido espaço ao novo que a importância do TBC diminui, segundo Maria Arminda. Para a professora, as técnicas teatrais, os textos dramatúrgicos e a formação de atores e encenadores foram decisivos não só para a modernização do teatro brasileiro, mas para o desenvolvimento de São Paulo. “O TBC está na raiz das transformações que transformaram a cidade numa metrópole cultural.”

O debate TBC – História e Permanência de um Marco do Teatro Moderno Brasileiro acontece nesta quarta-feira, dia 30 de maio, às 16 horas, na Biblioteca Mário de Andrade (Rua da Consolação, 94, Centro, São Paulo). Entrada grátis.


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