Criminalizar pode trazer mais problemas do que soluções

Avaliação é de grupo da Faculdade de Direito da USP que estuda e propõe estratégias de descriminalização

 09/05/2017 - Publicado há 8 anos     Atualizado: 25/04/2018 às 10:42
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No Brasil, há cerca de 1.700 hipóteses de crimes, ou seja, tudo que é definido como crime e coloca em risco concreto a liberdade de ir e vir do cidadão – Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Você sabia que utilizar gás de cozinha como combustível para aquecer uma piscina é crime no Brasil? A punição está prevista no Artigo 1º, II, da Lei 8.176. Ela foi criada em 1991, época em que o País enfrentava uma ameaça de crise no abastecimento de combustíveis por causa da guerra do Golfo Pérsico. A pena varia de um a cinco anos de detenção.

Esse é um dos exemplos apresentados pelo professor Mauricio Stegemann Dieter, do Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito (FD) da USP, para demonstrar quanto o Congresso Nacional aprova leis que criminalizam situações banais e se distanciam do conceito de crime como algo violento ou socialmente conflitivo.

Segundo o professor, uma estimativa do Ministério da Justiça é de que existam cerca de 1.700 hipóteses de crimes, ou seja, aquilo que autoriza o uso da prisão como resposta.

“Desses crimes todos, apenas cinco são responsáveis por produzir a grande massa carcerária, o que demonstra a absurda seletividade do sistema de justiça criminal brasileiro. Fora isso, quando tudo é crime, alargamos o sistema penal que não é parte da solução, e sim do problema. Temos ainda uma quantidade de promotores, policiais e juízes que é absurdamente grande e cara para o Estado, e a resposta que eles podem dar para diminuir a violência é mínima”, aponta Dieter.

Quando tudo é crime, alargamos o sistema penal que não é parte da solução, e sim do problema.

A crítica do professor é que não há estudos científicos que sustentem o aumento da repressão como resposta eficiente ou eficaz para redução da criminalidade. Pelo contrário: ao definir-se mais fatos como crimes, surgem também mais dificuldades do que soluções. Ele explica que há o problema que chamamos de crime, o problema que inventamos com a criminalização (a possibilidade de alguém ser acusado ou condenado por esse fato) e o problema do aumento da criminalidade (a quantidade de pessoas efetivamente acusadas ou condenadas por tal fato).

Maurício Stegemann Dieter, professor do Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

“Graças à regulamentação, as pessoas compram álcool, tabaco, café e ansiolíticos sem maiores consequências sociais (embora sempre exista um pequeno número de usuários problemáticos). Mas, ao criminalizarmos, trazemos para uma ação consensual (uma relação regular de compra e venda) toda a violência da repressão, determinada pela polícia e pelo Ministério Público, que em conjunto realizam uma genocida ‘guerra às drogas’ que produz milhares de vítimas fatais – matando mais do que o próprio uso indevido de drogas, portanto. Como se vê, a criminalização é, em regra, uma reação completamente irracional para questões mais ou menos complexas, com a consequência certa de aumentar a violência da situação social que tem por objeto”, afirma Dieter.

Ceppec

Contribuir para que se diminua a tipificação de fatos como crime e demonstrar que nem todo crime deve gerar como punição o encarceramento são um dos focos do Centro de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais (Cepecc), criado pelo professor há três anos na Faculdade de Direito.

O grupo reúne estudantes, docentes, movimentos sociais e agentes do sistema de justiça criminal. Eles desenvolvem pesquisas na área de Ciências Criminais, principalmente Criminologia e Política Criminal, para propor e viabilizar estratégias de descriminalização a curto, médio e longo prazo.

Resumidamente, a Criminologia estuda as determinações do crime, por exemplo, o porquê de alguém matar outra pessoa ou se corromper, além da reação social e institucional para esses fatos e a própria orientação do processo de criminalização. Já a Política Criminal trabalha com o conjunto de estratégias de prevenção, repreensão e tratamento das consequências do crime.

De acordo com Dieter, as duas áreas se relacionam. “No caso de um estupro, a partir da pesquisa em Criminologia, é possível investigar as determinações do estupro, se ele é produto de pessoas monstruosas ou de uma cultura de objetificação do corpo, bem como a própria transformação spcio-histórica do conceito de estupro, reproduzido ou não pela lei. A partir do estudo, cria-se estratégias para prevenir, reprimir e tratar das consequências das situações criminalizadas e do próprio processo de criminalização, incluindo-se, no exemplo, o tipo de assistência que o Estado deve oferecer à vítima de violência sexual etc. Essa parte está relacionada à política criminal.”

A atuação do Cepecc se concentra em três ações. A primeira é na formação do grupo, composto de aproximadamente 40 pessoas, com programas de leitura em Criminologia para o desenvolvimento de pesquisas.

A segunda parte é a promoção do conhecimento gerado no Cepecc com a realização de jornadas periódicas de formação. São cursos gratuitos com especialistas na área de Criminologia. Um deles está acontecendo nesta semana, dias 8, 10 e 12 de maio, com um dos fundadores da Criminologia Crítica na Europa, o professor Roger Matthews, da Universidade de Kent, na Inglaterra, com o tema A Criminologia Realista.

A terceira ação é de atendimento à sociedade com a realização gratuita de pareceres jurídicos e criminológicos. O parecer é uma opinião técnica anexada ao processo. O Cenpecc atua principalmente em questões controversas, com implicações político-criminais, ou casos da Defensoria Pública.

 


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