As pessoas estão se casando mais tarde. No Estado de São Paulo, por exemplo, a idade média do casamento dos homens aumentou 23% de 2000 para 2023 e nas mulheres foi de quase 30%. Mas não só em São Paulo, como também no mundo: casar mais tarde é uma tendência disseminada. No Brasil, de 1994 a 2014, a idade média dos casamentos subiu cerca de 25%. Nos Estados Unidos, a tendência segue há mais tempo: desde a década de 70, o salto é de 40%.
Um fato conhecido por trás dessa mudança é a entrada da mulher no mercado de trabalho, mas a professora do Instituto de Psicologia da USP, Belinda Mandelbaum, explica mais a fundo esse fenômeno. Ela reconhece, claro, que as transformações econômicas impactaram a idade dos casamentos, mas também oferece outras perspectivas.
Repensando as relações
Ao longo do século 20, Belinda diz ter havido uma profunda transformação no que diz respeito às bases de grandes instituições sociais, dentre elas o casamento. O modelo tradicional, tido como o ideal de relacionamento entre os sexos – da união conjugal, heterossexual, religioso – foi repensado e posto em xeque. Segundo ela, em especial “os elementos de autoritarismo, de violência e de sofrimento que estavam implicados nessas relações”.
A partir dessas desconstruções, abriu-se mais espaço para formas plurais de se relacionar. Um exemplo disso são as uniões estáveis, que só em 15 anos aumentaram 464% no Brasil. Ou seja, não existe mais tanta pressa para se encaixar em um só modelo, e a antiga hierarquia entre os sexos pôde ser balanceada. O papel do feminismo, nesse sentido, deve ser ressaltado: “A busca da mulher pela sua independência financeira, por uma situação de maior igualdade entre os sexos… então temos essa ruptura com essa situação de dependência”.
Desejo em questão
Outra libertação que as mudanças do século 20 proporcionaram foi a quebra da expectativa de que a mulher tem que se casar virgem, idealizada, “perfeita”. Agora existe sexo fora do casamento e a possibilidade de as mulheres se realizarem sexualmente fora dos casamentos, segundo comenta Belinda. Como consequência, surgem modelos de relação menos compromissados e também relações monogâmicas estáveis, mas que não se apressam em casar por poderem fazer sexo mesmo sem um rótulo oficial.
Essas mudanças contemporâneas contribuíram para a quebra desse modelo fixo, possibilitando que as mulheres – e por que não os homens também – questionassem o que realmente querem. Isso vale para a sexualidade, mas também para o desejo como forma mais ampla. “Eu acho que a psicanálise, por exemplo, teve um papel fundamental no sentido de trazer para a cena social a questão do desejo pessoal.” O movimento feminista, a pílula anticoncepcional e várias correntes de pensamento moderno, da cultura de Woodstock até a filosofia estruturalista, construíram um novo modelo que valoriza o indivíduo em suas particularidades e potenciais. Dessa forma, pode-se “ser diferente daquilo que a sociedade, que os modelos sociais preconizam”, abrindo espaço para mais diversidade também dentro do casamento.
Vale ressaltar que mudar é diferente de acabar: a psicóloga da USP é determinante em afirmar que o casamento está longe de desaparecer. Na verdade, essa nunca foi a intenção, apenas suas estruturas rígidas e autoritárias foram questionadas. Belinda diz que o casamento ainda é uma instituição forte e com muita importância na sociedade. Inclusive, a união íntima entre duas pessoas pode servir como um pilar neste mundo tão fluido, incerto e solitário que é a sociedade moderna: “Tenho a impressão que fica restando uma espécie de nostalgia pela possibilidade de ter uma relação humana pessoal mais estável”.
Interesses que agem por trás
Já de um ponto de vista mais sociológico, a psicóloga diz que a luta de um modelo idealizado e fixo de relação não é desprovida de interesses. Ela afirma que a desconstrução de um casamento “perfeito” implica se relacionar mais como sociedade – construindo como casal, mas também como humanidade. E isso, do ponto de vista do poder do capital, é visto com muito receio. “Essa proposta de retorno a essa família idealizada é também uma forma de o Estado se abster de cumprir as suas demandas de proteção social.”
Ao deixar de apontar os defeitos dos padrões familiares tradicionais, a conclusão é que o casamento e a família seriam lugares seguros para depositar toda a responsabilidade social. O ponto de vista conservador e individualista traz, segundo a professora, uma intenção indireta de sociedade neoliberal consigo. Coloca-se sobre a família a demanda de cuidar da saúde, da educação e afins, esvaziando o espaço de construção coletiva. “Então, vemos como mesmo algo que é visto como uma demanda no campo da moral e dos costumes também tem esse componente ideológico.”
*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira
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