Iconomia de guerra é disputa de narrativas

Produzir imagens para povoar a esfera pública e reduzir a racionalidade dos comportamentos torna-se também uma arma com poder de destruição em massa

 23/10/2023 - Publicado há 1 ano
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Nosso tema hoje (23) não poderia ser outro: o conflito entre o Estado de Israel e a organização terrorista Hamas, que controla a Faixa de Gaza, mas nesse contexto eu quero comentar não os aspectos econômicos ou geopolíticos, históricos ou mesmo religiosos. Eu chamo a atenção para o retorno desse tema essencial na sociedade do espetáculo digital, que é o valor das imagens da guerra, muitas vezes essas imagens tornam-se ícones, ou seja, resumem numa só configuração visual, num enquadramento, numa expressão facial ou cenográfica o sentido maior que a própria história eventualmente consagra como o resumo da ópera. Penso em imagens como uma célebre foto de uma criança nua correndo por uma estrada em meio um bombardeio com bombas napalm no Vietnã, ou o momento da colisão do avião de passageiros a jato penetrando a estrutura de ferro e vidro das Torres Gêmeas em Nova York.

As imagens de guerra e o fotojornalismo são também armas na disputa das narrativas – uma imagem pode se tornar a chave de um código, uma senha para entrar no significado maior do conflito, e claro, estabelecer quem está com a razão, quem é a vítima, qual o sentido histórico daquele instante aprisionado pela máquina fotográfica. Essa atividade que decifra, codifica, interpreta ou traduz uma narrativa, no entanto, não é uma atividade que se esgota no instante imediatamente posterior ao clique do fotógrafo, cedendo imagens tão intensas, frequentes e voltadas para a população civil mundial quanto os mísseis disparados pelos terroristas do Hamas. Autênticos videoclipes e paragliders sobrevoando a cerca de segurança em torno de Gaza tornaram-se imagens de jovens sendo sequestrados, civis e crianças degolados e metralhados, numa celebração pura de terror, racismo e barbárie.

Em todas as imagens, uma tornou-se ainda mais complexa, justamente porque, em si mesma, abriu um novo confronto: me refiro aqui à imagem do hospital bombardeado, onde morreram mais de 500 palestinos, muitos civis inocentes que buscavam refúgio em sua fuga das áreas totalmente dominadas pelo grupo terrorista Hamas, especialmente na cidade de Gaza. O que parecia destinado a se converter num ícone da injustiça, do ódio e do espírito de vingança israelense, no entanto pode ter sido, na verdade, um míssil com defeito, lançado pelos próprios terroristas. A imagem, que seria o ícone fatal dessa amoralidade israelense, a demonstração cabal de que o terror não é obra do grupo terrorista, mas de um Estado moderno, democrático e ainda laico, essa imagem que seria esse ícone fatal, quase para provar que o judeu é que é o nazista, essa imagem de repente não funcionou.

O exército israelense e o próprio governo dos Estados Unidos serviram-se então de um sistema avançado, complexo, inteligente de rastreamento de imagens por satélite e outras câmeras para demonstrar que a bomba que trucidou centenas de palestinos veio do lado que se pretende apresentar como vítima e salvador. A própria invasão do território israelense, no entanto, valeu-se de uma falha nesse sistema avançado, complexo, inteligente de rastreamento de imagens. Os grupos terroristas Hamas e a Jihad Islâmica cuidaram inicialmente de destruir as câmeras de vigilância – entre outras tecnologias recentes que são de baixo custo, adaptaram-se drones para explodir torres de telecomunicações. A relação entre a sociedade do espetáculo, entre o valor das imagens e o potencial de destruição, violência e desumanização fica assim cada vez mais estreita, mais intensa e crescente. O consumo de imagens substitui a esfera da argumentação pública e o círculo vicioso entre um sistema mundial de telas e a promoção da polarização do ódio, do terror, do extremismo, do fundamentalismo se aprofunda, torna-se impensável sem a geração de ícones em busca de legitimação. É a triste realidade de uma iconomia de guerra.


Iconomia 
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