Estudos geomorfológicos podem prevenir eventos como as inundações no RS

Cleide Rodrigues explica que os fatores geográficos e morfológicos são pouco analisados e seu estudo amplia as possibilidades de mudanças nas legislações e diretrizes

 Publicado: 05/07/2024
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A legislação ambiental foi degradada ao longo das últimas décadas, as referências de demarcação a partir de uma margem de rio e tudo aquilo que define uma Área de Preservação Permanente (APP) – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
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Mais de 2,3 milhões de pessoas foram afetadas, de alguma maneira, com o evento de inundações que ocorreu no Estado do Rio Grande do Sul nos últimos meses. Com mais de meio milhão de pessoas desalojadas de suas casas, mais de 800 feridos, mais de 470 cidades afetadas e 32 pessoas ainda desaparecidas, a Defesa Civil do Rio Grande do Sul confirmou, nesta terça (2), a 180ª morte decorrente das enchentes que atingiram a região.

Contudo, um aspecto pouco comentado sobre o ocorrido é o geomorfológico e geográfico. De acordo com Cleide Rodrigues, professora de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo, essa análise pode ajudar a prevenir outros eventos como este, já que uma associação entre eventos extremos e sistemas atmosféricos já é bem estabelecida. No caso das enchentes de alta magnitude, algumas possíveis relações são as mudanças climáticas de sistemas atmosféricos globais — principalmente após a Revolução Industrial e a Segunda Guerra Mundial —, sem contar a ação e duração de eventos como o El Niño e a La Niña e suas interações com sistemas de circulação marinha, responsáveis por eventos extremos de estiagem ou de precipitação no Brasil. “Do ponto de vista da geografia e da geomorfologia, fica faltando um olhar a respeito daquilo que a gente tem mais condição de mexer. Então é um somatório, na verdade, um componente natural e um componente antrópico colaborando no mesmo sentido do aquecimento e também da ampliação desses eventos extremos”, complementa.

Além dos fatores climáticos

A especialista observa que, para além dos fatores climáticos, aos quais muita parte da informação veiculada atribui de forma quase exclusiva ao episódio ocorrido no Rio Grande do Sul e a outros eventos parecidos, um dos agravantes é a ocupação que se deu, não só no Rio Grande do Sul, mas no Brasil inteiro, que segue um modelo de transgressão legal, com desobediência às leis, seja por má-fé ou jurisprudência na aplicação da legislação que existe. Segundo ela, a nossa legislação ambiental foi degradada ao longo das últimas décadas, as referências de demarcação a partir de uma margem de rio e tudo aquilo que define uma Área de Preservação Permanente (APP), além de outras ingerências de ordem federal ou municipal, são difusas e diversificadas.

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“Nós temos um histórico de transgressão dos textos legais, inclusive com agentes públicos sendo os transgressores. Além disso, grande parte da urbanização brasileira acabou deixando, para essas décadas mais recentes, alguns terrenos de menor aptidão ao uso urbano, e hoje eles são ocupados ou são objeto da especulação imobiliária, então, em margens de rios, em geral, nós temos essa problemática, esses conflitos de interesse e esse histórico”, afirma.

Cleide Rodrigues – Foto: IEA

Ainda assim, a docente entende que, do ponto de vista do uso da terra e da gestão humana, esse evento catastrófico deve servir, ao menos, como uma grande lição, porque o padrão de ocupação, de transgressão e degradação da legislação é recorrente em todo o território brasileiro. Ela comenta: “Neste momento, devemos refletir sobre essa outra variável, de influenciar uma mudança de postura, com apropriação do solo, melhoria dos textos legais e trazer referências que a ciência vem trabalhando sobre essas ocupações”.

Estudos geomorfológicos

Cleide explica que, do lado da geomorfologia fluvial, ela e outros profissionais, com colaborações entre diferentes universidades e institutos, estão trabalhando com a questão de tentar extrapolar para além dos registros históricos de dados de vazão de rios, e fazer uma análise hidráulica e hidrológica consolidada desses registros. “A própria morfologia das planícies de inundação e dos terraços vem sendo associada a eventos com uma frequência muito maior do que se supunha antes. Para além daquilo que era mais ou menos óbvio, que a planície de inundação vai inundar, nós também estamos conseguindo identificar a frequência e a magnitude, e não pelo registro direto, mas sim pela forma, materiais sedimentares, pois eles denunciam que esses processos aconteceram fora do período de registro que nós temos. Depois, nós temos que conciliar o sistema natural com as informações das intervenções que são feitas, as canalizações, os aterros e tudo mais”, acrescenta.

A professora reitera a necessidade desse conhecimento para a mudança na legislação, além da reconstrução do local e da formulação de diretrizes de apropriação do solo em áreas ribeirinhas. Ela destaca que o cuidado em sistemas fluviolacustres (que diz respeito aos rios e aos lagos, simultaneamente), como os de Porto Alegre e arredores, deve ser ainda maior, já que outros fatores morfológicos ampliam essa complexidade, como a pouca residência das águas das bacias locais nas regiões serranas, gerando uma transmissão de água muito rápida em função do próprio relevo existente, além da atuação dos ventos, que pode gerar um efeito de represamento hidráulico, contribuindo para a permanência de águas que transbordaram lagos e rios.

“Não podemos ocupar essas planícies, mesmo que a gente tenha sistemas de engenharia, é preciso pensar de forma interdisciplinar, colaborativa, porque a gente já viu o exemplo de São Paulo. Muitas dessas soluções hidráulicas têm uma função interessante para lidar com a questão das inundações, mas estão pautadas em informações dos registros diretos e não em informações daquilo que a natureza dá de indicação. É todo um modelo que precisa ser repensado a despeito das mudanças climáticas, há uma convergência de variáveis que atuam no sentido do aumento da magnitude das vazões, para além daquilo que a natureza está indicando como magnitudes que serão ocupadas uma hora ou outra, a gente está ampliando essa possibilidade”, finaliza.

 


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