
Apesar de ter conquistado mais visibilidade no cenário educacional do Brasil, a educação infantil ainda apresenta demandas estruturantes em todo o País. Diante da necessidade de aprofundamento dos debates sobre temas estratégicos desta etapa, a Fundação Bracell, em parceria com a Cátedra Sérgio Henrique Ferreira do Instituto de Estudos Avançados da USP Ribeirão Preto (IEA-RP), organizou a Mesa de Aprofundamento com Foco no Regime de Colaboração. O encontro foi realizado na sede do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, em São Paulo, e reuniu representantes das três esferas de governo (municipal, estadual e federal), além de pesquisadores e conselheiros de educação, para a construção coletiva de um documento com recomendações, que será lançado em breve.
Um dos objetivos do encontro foi reunir conhecimentos de diferentes atores estratégicos para contribuir com insumos de qualidade para as agendas das políticas públicas de educação infantil. A discussão deu continuidade e densidade ao tema, que já havia sido debatido no I Simpósio Internacional de Educação Infantil, realizado em junho de 2024 pela Fundação Bracell, com parceria do J-PAL, Insper e IEA-RP/USP, além de cooperação da Unesco. O foco, agora, estava centrado em identificar ações para fortalecer o regime de colaboração como estratégia para a qualidade da educação infantil.
A Constituição de 1988 estabelece o regime de colaboração entre municípios, estados e União para a oferta de educação, mas a falta de regulamentação clara e de instâncias institucionais de diálogo tornam a colaboração frágil e dependente da iniciativa particular dos gestores. Apesar disso, experiências bem-sucedidas têm emergido nas últimas décadas, oferecendo inspirações para expansão em escala nacional.
“Nossa estrutura federativa traz um conjunto de desafios envolvendo tanto a quantidade de atribuições dos entes quanto a capacidade de cumprir com essas responsabilidades; é uma estrutura que, pelo seu próprio desenho, é desafiadora para fazer funcionar bem, e nós entendemos que o regime de colaboração tem um papel importante para a gente conseguir superar alguns desses desafios postos”, afirmou Filomena Siqueira, diretora de projetos da Fundação Bracell. “Mas, para que isso se concretize, é preciso regulamentar as iniciativas de colaboração, para que não fiquem suscetíveis às vontades dos atores, que ora têm intencionalidade de cooperar, ora não, dependendo da interferência de disputas partidárias.”
Mozart Neves Ramos, titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira, destacou que a corresponsabilidade entre estado, família e sociedade, já prevista no artigo 205 da Constituição Federal, é também um caminho para blindar e inibir a descontinuidade de políticas públicas. “Por melhor que um gestor seja, por maior o esforço que tenha sido colocado, quando troca o governo estamos sempre suscetíveis a mudanças, nas quais algumas coisas se perdem. A colaboração e a participação da sociedade são fundamentais na continuidade das políticas públicas, desde que mostrem resultados”, afirmou. Segundo ele, ainda faltam materiais robustos e que ajudem a implementar a colaboração entre estados e municípios.
“Uma das coisas que a gente gostaria de trazer como consequência desse evento é gerar um estudo que possa ser apresentado como contribuição ao Conselho Estadual de Educação de São Paulo e ao Conselho Nacional. Não como normativa, mas como uma referência para auxiliar esses órgãos com a perspectiva da sociedade sobre a importância de fortalecer o regime de colaboração, principalmente no âmbito da educação infantil”, defendeu Mozart.
Participantes apontam caminhos para a mudança
O diretor-presidente da Fundação Bracell, Eduardo Queiróz, destacou a importância dos municípios contarem com os estados para avançar na qualidade da educação infantil. “A gente sabe que são muitos os municípios com limitações financeiras e de recursos técnicos. Sem os estados, vai ser difícil a gente conseguir mudar o cenário atual. Precisamos envolver todos os entes e apontar caminhos, tendo o regime de colaboração como peça fundamental para avançar e superar nossos desafios.”
Rita Coelho, coordenadora-geral de Educação Infantil da Diretoria de Políticas e Diretrizes da Educação Integral Básica do Ministério da Educação (MEC) apresentou o conjunto de ações de apoio técnico e financeiro da União aos estados e municípios, no qual está sendo proposta uma governança interfederativa. “A organização do atendimento da educação infantil é essencialmente municipal, nós temos regras de regulação de alguns papéis, mas eles não estão organizados colaborativamente. A colaboração é um princípio, mas ela ainda não é imperativa, atualmente cada ente colabora se tiver compromisso com este princípio”, afirmou.
“Pela fragilidade dos nossos sistemas, a desigualdade se manifesta com muita força na educação infantil. Um dos desafios do regime de colaboração é a desconsideração da educação infantil como campo de produção de conhecimento e de formulação de políticas. Os governos, os conselhos, desconhecem a produção da área e isso é complicado porque tem especificidades da formação profissional, da avaliação, da visão de desenvolvimento infantil, que não podem ser desconsideradas”, analisou Rita.
A presidente do Conselho Estadual de Educação de São Paulo e titular da Cátedra Instituto Ayrton Senna de Inovação em Avaliação Educacional, Maria Helena Guimarães Castro, relembrou que o tema já vem sendo debatido há décadas e que um dos pontos em que ainda é necessário avançar é o monitoramento da qualidade a partir de avaliações. “É muito importante ter uma legislação organizada e alinhada a um monitoramento que chegue até as redes, que os professores acompanhem e que a sociedade cobre. É preciso saber se estão sendo desenvolvidas todas as dimensões da educação infantil e como está sendo feita a transição para o ensino fundamental”, defendeu. “Um bom programa de educação infantil e de primeira infância está entre os pontos mais importantes para melhorar o futuro do País. Mas se não houver um belo monitoramento e um vínculo de engajamento entre os estados e seus municípios, vai ser muito difícil avançar. É no governo local que tudo acontece, mas ele não pode resolver tudo sozinho.”
O presidente da seccional paulista da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Luiz Miguel Garcia, apresentou um levantamento do órgão indicando que as ações de colaboração costumam se dar nas áreas de formação continuada, construção de creches, convênios e apoio pedagógico e de material didático. Mas seguem como desafios a expansão de vagas, questões de infraestrutura, de currículo, de seleção e formação de profissionais.
“Quando tratamos de educação infantil, o grande conjunto de profissionais capacitados para as atividades está nos municípios, porque os estados foram desarticulando sua rede de atendimento; mas ainda sofremos muito com uma visão histórica hierárquica de que os governos estaduais e o federal mandam mais, e o município só obedece. Muitas vezes é subvalorizado o papel dos municípios, não se acredita que tenham capacidade de desenvolver e criar ações”, afirmou. “No entanto, quando a gente consegue fazer processos de escuta e de troca adequados, quando temos essa colaboração, conseguimos nos fortalecer e garantir a estabilidade dos programas. Se há trocas de secretários municipais, o estado pode garantir a continuidade e, do mesmo modo, se há troca de secretário estadual, os municípios podem cobrar a permanência.”
A programação contou também com falas de renomados especialistas como Fernando Abrúcio, Márcia Campos, Mariza Abreu, Maria Cecília Motta, Márcia Bernardes, Diego Calegari, Vastí Ferrari, Élida Pinto e Pilar Lacerda. “Se vamos dar prioridade absoluta aos direitos das crianças e adolescentes, temos que dar condições para essa colaboração acontecer e empoderar os municípios. É no município que o impacto acontece, mas eles são tratados com menos atenção”, apontou. “A hierarquização do poder financeiro ainda barra o regime de colaboração. A gente tem que pensar em uma articulação entre os entes federados sem hierarquia, buscar uma distribuição de poder equilibrado”, defendeu Pilar Lacerda, integrante do Conselho Nacional de Educação.
O que é o regime de colaboração?
Atuar em regime de colaboração significa basicamente desenhar estratégias e buscar mecanismos para uma atuação coordenada e complementar entre os diversos atores responsáveis pela qualidade da educação em um território. Para construir esse entendimento mútuo, é preciso viabilizar o diálogo e a pactuação, em espaços de deliberação e tomada de decisão verdadeiramente coletiva, em função do interesse público e do bem comum.
Tais práticas colaborativas têm sido mais comumente aplicadas a questões estruturais e logísticas, como transporte escolar, alimentação e construção de prédios escolares, mas ainda faltam ações com foco na qualidade da educação do ponto de vista pedagógico e do desenvolvimento integral. As disparidades entre os municípios, a fragilidade da colaboração intergovernamental e a falta de mecanismos institucionais eficazes são alguns dos fatores que comprometem esta etapa. A necessidade de colaboração é um tema central para avançar a educação infantil e garantir que as crianças tenham seu desenvolvimento integral garantido e alcancem todo seu potencial ao longo da vida.
*Assessoria de Imprensa da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira do IEA-RP