Em algumas igrejas evangélicas, já possível identificar ativismo negro que combate o racismo - Foto: Reprodução / Pixabay

Ativistas negros evangélicos buscam reconhecimento e lutam contra o racismo

Movimento negro evangélico que atua em algumas igrejas evangélicas busca legitimidade na luta contra a discriminação racial

 06/03/2023 - Publicado há 1 ano

Texto: Antonio Carlos Quinto

Arte: Joyce Tenório

As discussões sobre o racismo no Brasil estão, cada vez mais, em todos os setores da sociedade. “Em algumas igrejas evangélicas é possível identificar um ativismo negro que combate o racismo e, ao mesmo tempo, busca legitimidade e reconhecimento”, descreve o cientista social Vítor Gonçalves Queiroz de Medeiros.

Em sua pesquisa de mestrado intitulada Ativismo negro evangélico no Brasil contemporâneo, apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, o pesquisador analisou a atuação de grupos como o Movimento Negro Evangélico (MNE), a Rede de Mulheres Negras Evangélicas, o Discipulado Justiça e Reconciliação (DJR), Pastoral Metodista de Combate ao Racismo, Pastoral Rosa Parks, entre outros, além de situações que evidenciam as dificuldades dos ativistas negros evangélicos em participarem da problematização pública do racismo.

Para o estudo, o cientista social analisou fontes documentais, monitorou notícias e mídias sociais, e também realizou entrevistas com cerca de 25 pessoas ligadas a movimentos negros evangélicos. “Eu também observei e participei de grupos de ativistas evangélicos negros em São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco, entre 2019 e 2021”, conta Medeiros ao Jornal da USP.

Durante a pesquisa, duas situações específicas chamaram a atenção do pesquisador. “Numa delas, dois palestrantes ligados ao Movimento Negro Evangélico foram ‘desconvidados’ de um evento no Rio de Janeiro.” O fato, como informa o pesquisador, aconteceu em julho de 2019 e o evento era um Congresso da Juventude Batista Brasileira.

Vitor Gonçalves Queiroz é doutorando em Sociologia pela FFLCH - USP. foto: Cecília Bastos/USP Imagens

“O ‘desconvite’ gerou grande controvérsia. Esse caso foi abordado como demonstrativo da dificuldade de ativistas evangélicos progressistas em seu trabalho de base no interior das igrejas”, lembra.

Em outro episódio, uma vereadora evangélica do Recife, em Pernambuco, realizou postagens contra o 2 de fevereiro, dia de Iemanjá, em 2018. “Os representantes do MNE se posicionaram publicamente de forma favorável aos cultos afros e contra a vereadora, acusando-a de intolerância e racismo”, ressalta Medeiros. Como observado pelo pesquisador, a solidariedade aos cultos afros se tornou uma pauta relevante na agenda dos movimentos negros evangélicos.

A atuação do movimento em algumas igrejas evangélicas pode ser percebida, até mesmo, em pregações normais. “Pude observar em alguns momentos relatos de racismo, orações em prol da juventude negra, alvo prioritário de violência, e observei que alguns pastores faziam orações de gratidão à ancestralidade negra”, lembra Medeiros. Contudo, de acordo com o pesquisador, tais situações não chegam a ser parte do cotidiano de alguns cultos evangélicos. “Muitos dos ativistas do Movimento Negro Evangélico são, por vezes, atacados por outros evangélicos refratários à problematização do racismo e por se identificarem como progressistas ou de esquerda, assim como por defenderem os cultos afros. Mesmo assim, continuam solidários à causa”, explica.

Um País evangélico?

Segundo Medeiros, no Brasil, atualmente, cerca de um terço da população é evangélica. Isso, claro, levando-se em conta todas as correntesEle cita uma pesquisa de 2020 do Datafolha, publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, em janeiro daquele ano, apontando que, na época, 50% dos brasileiros eram católicos, 31%, evangélicos e 10% não tinham religião. A pesquisa foi feita com 2.948 entrevistados em 176 municípios de todo o País.

Como descreve o pesquisador, as igrejas protestantes chegaram ao Brasil no século 19. “Vale lembrar que os evangélicos acabaram sendo herdeiros da Reforma protestante do século 16”, explica Medeiros. Mais tarde, na passagem do século 19 para o 20, surgiram as igrejas pentecostais que, em seus cultos, dão ênfase às curas e aos dons espirituais. “Vale destacar nesse segmento a Assembleia de Deus“, informa o pesquisador. “Já nos anos 1950, surgiram outras igrejas como Deus é Amor e O Brasil para Cristo, que também enfatizam as curas divinas. Elas foram as pioneiras a usar o rádio para transmitir seus cultos”, lembra Medeiros.

Já nos anos 1970 e 1980 surgiram os neopentecostais, como a Igreja Universal, Renascer em Cristo e, mais tarde, a Sara Nossa Terra, entre outras.

“Fica evidente entre os neopentecostais uma ênfase à teologia da prosperidade, a guerra espiritual contra o diabo, bem como uma maior liberalização de usos e costumes”, observa o cientista social.

Tensionamentos

Em seu estudo, Medeiros pôde presenciar as diversas dificuldades de atuação dos ativistas negros evangélicos. “Com um viés essencialista, alguns autores diziam que os evangélicos negros sempre rejeitavam as ditas ‘heranças africanas’. Contudo, meu estudo mostrou o contrário: os ativistas negros evangélicos ativam os signos afros, só que fazendo uma espécie de filtragem. Além das orações de gratidão à ancestralidade, eles fazem uma releitura da Bíblia com base na teologia negra destacando, por exemplo, as origens africanas das paisagens e personagens bíblicas”, descreve.

A atuação dos integrantes do Movimento Negro Evangélico se fortalece, segundo Medeiros, com a participação de muitos jovens, vários deles de berço evangélico, mais escolarizados que os pais e tendencialmente mais liberais. Isso inclui aqueles que ele denomina como “os desigrejados”, indivíduos que se autodenominam evangélicos, mas não pertencem a uma igreja nem frequentam cultos assiduamente.

Protesto organizado pelo MNE de Pernambuco em repúdio à morte de um garoto por seguranças do mercado Extra em 2019 - Foto: Raynara Marques/Mídia Ninja

Outro ponto de tensionamento que ficou mais evidente nos últimos anos foi a questão política. “Toda aquela situação de polarização político-ideológica, esquerda e direita, permeou e ainda permeia o meio evangélico”, descreve Medeiros. Os ativistas negros evangélicos, segundo o pesquisador, se assumem como esquerdistas. “Mesmo assim têm de buscar legitimidade tanto diante do Movimento Negro, quanto com relação aos evangélicos, amargando uma situação politicamente liminar”, relata.

Ao mesmo tempo em que considera que o País está ficando cada vez mais evangélico, Medeiros enfatiza que as questões antirracistas também estão se fortalecendo, junto com a redemocratização. “Nesse sentido, o Movimento Negro Evangélico acaba expressando uma confluência de mudanças histórico-estruturais no País”, avalia.

O Movimento Negro Evangélico

O Movimento Negro Evangélico se desenvolve, com altos e baixos, desde os anos 1970 no Brasil, influenciado pela teologia negra e pelo imaginário da luta do pastor batista Martin Luther King Jr. pelos direitos civis dos negros nos EUA, nos anos 1960.

De modo geral, os grupos de ativismo negro evangélico fazem manifestações, atos e cultos de protesto, rodas de conversa, seminários, publicam conteúdos nas redes sociais, publicam manifestos e notas de repúdio, cartilhas de formação e apoiam iniciativas do movimento negro.

Medeiros destaca entre as lideranças negras evangélicas contemporâneas o pastor Ariovaldo Ramos, pastor Marco Davi de Oliveira, Jackson Augusto (que tem uma página chamada “Afrocrente”), Vanessa Barboza e o pastor e cantor gospel Kléber Lucas.

Em 2021, a pesquisa de Medeiros recebeu o Prêmio Lélia González de Manuscritos Científicos Sobre Raça e Política, promovido pela Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP).

Mais informações: vitormedeiros819@gmail.com ou vitor.goncalves.medeiros@usp.br

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