Manifestações afros são incorporadas à cultura sem valorização dos negros

Dentre os rituais e símbolos culturalizados pelo poder público com pouca consideração sobre suas origens, estão a capoeira, o samba e a festa do Senhor do Bonfim

 03/08/2018 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 06/08/2018 as 19:30
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Presença de rituais e símbolos afros na celebração de uma missa na Basílica de Nossa Senhora Aparecida, Aparecida, SP, 2017 – Foto: Rosenilton S. de Oliveira

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O poder público brasileiro participa de um processo de culturalização de símbolos e rituais religiosos de origem africana, sem dar a devida valorização às pessoas que os trouxeram e os produzem no País. O assunto foi uma das abordagens de uma pesquisa de antropologia, feita na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e na Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS- Paris).

Na década de 30, o samba e a capoeira foram reconhecidos como música e esporte nacional, mas os sambistas e os capoeiristas por muito tempo sofreram discriminação e eram punidos perante a lei, relata Rosenilton S. de Oliveira, autor da pesquisa – Foto: Kae Amo

Rosenilton da Silva de Oliveira, antropólogo e autor da pesquisa, cita como exemplos o samba e a capoeira que, na década de 30, foram reconhecidos e valorizados como música e esporte nacional, mas, por muito tempo, sambistas e capoeiristas sofreram discriminação e eram punidos perante a lei. Sobre as manifestações religiosas, outro exemplo mais recente foi a concessão do título de Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil aos festejos da Lavagem do Senhor do Bonfim, cortejo afro-religioso que acontece em Salvador, na Bahia, desde 1745. Na cerimônia, fieis saem da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, no centro da cidade, e vão até a Colina Sagrada do Bonfim, a oito quilômetros de distância. Durante este ritual, as escadas e o átrio da igreja são lavados com água perfumada por mães-de-santo vestidas com trajes típicos de baiana.

Uma das versões da origem desta festa consta do mito de Oxalá (Deus) que, ao visitar o reino de Xangô (o rei), é confundido com um ladrão de cavalos e preso injustamente por sete anos. Depois de muitas intempéries no reino devido ao mal-entendido, Xangô, consternado diante de tamanho equívoco, dá ordem aos seus súditos para que fossem, vestidos de branco e em silêncio, buscar água para lavar Oxalufã (o Senhor do Bonfim).

Neste caso, lembra o pesquisador, que embora a festa do Senhor do Bonfim guarde estreita ligação com o contexto afro-religioso brasileiro, em 2014, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), ao inscrever o evento como patrimônio cultural imaterial do Brasil, o faz no escopo eminentemente de “festas religiosas católicas”. “Os aspectos religiosos africanos, mesmo reconhecidos, foram descritos como sendo ‘representativas de certa brasilidade’”, afirma o antropólogo.

Confirmando essa tese sobre o apagamento das origens afro-religiosas do evento, no dia em que foi oficializada a entrega do título, em 2013, receberam agraciamentos o governador do Estado da Bahia, o prefeito municipal, o arcebispo de Salvador e o juiz da Irmandade do Nosso Senhor do Bonfim e Nossa Senhora da Guia, mas nenhuma personalidade afro-religiosa foi lembrada.

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Igrejas católicas e evangélicas adotam discurso étnico racial  em seus templos

A pesquisa também buscou compreender, para além das ações dos religiosos de matrizes africanas, a participação de lideranças católicas e evangélicas na promoção de políticas públicas voltadas para a população negra no Brasil. O pesquisador partiu do princípio de que no campo religioso os símbolos da herança africana no Brasil são articulados de modos distintos devido às diferenças teológicas que orientam as ações políticas e sociais dos fiéis.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 64% da população professa o catolicismo. Desses, 51% se autodeclaram pretos ou pardos. Entre os evangélicos, que somam 22% dos brasileiros, 54% são negros. As religiões de matrizes africanas continuam possuindo o maior número de fiéis: cerca de 70% dos adeptos.

Na Igreja Católica, desde a década de 1970, foram os agentes de pastoral negros e, posteriormente, a Pastoral Afro-brasileira, que se incumbiram das ações de combate ao racismo e da adoção de políticas e de respeito à diversidade racial e religiosa. Concomitantemente, surgiram as primeiras experiências de incorporação de elementos das religiões afro-brasileiros às celebrações católicas, afirma o pesquisador. Por meio desses grupos, instrumentos como atabaques, indumentárias, tecidos coloridos, túnicas, danças e músicas que dialogam com o universo cultural e religioso afro foram introduzidos às liturgias das missas, batizados e casamentos. Os santos de origem africana e de pele negra também passaram a ter mais destaque da devoção dos fiéis, como foi o caso de São Benedito, de Santa Efigênia e de Nossa Senhora Aparecida.

Foto: Rosenilton S. de Oliveira

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Por sua vez, no contexto evangélico, “vimos surgir, no final do século 20, o Movimento Negro Evangélico”, reunindo fiéis de várias denominações evangélicas, sobretudo aquelas classificadas como “igrejas de missão” pelo IBGE, como batistas e metodistas. Diferentes dos católicos, os negros dessa matriz religiosa recorrem à literatura bíblica para encontrar personagens negros para destacá-los em suas liturgias. Vale ressaltar que, no caso dessas igrejas, as ações voltadas para a população negra são sobretudo em combate ao racismo e em defesa dos direitos humanos. Apesar dessas inciativas, se observa que as neopentecostais ainda são hoje consideradas como um dos maiores expoentes de intolerância contra as religiões afro-brasileiras.

O contexto religioso brasileiro é complexo e multifacetado, afirma o antropólogo. Embora a pesquisa tenha verificado que existe dentro dos movimentos negros localizados nas igrejas evangélicas e católicas divergências sobre os significados atribuídos à identidade negra e o modo de lidar com os símbolos das heranças africanas no Brasil, paralelamente, houve, neste mesmo período, ações dialógicas que caminharam no combate ao racismo e na promoção do diálogo inter-religioso, do ecumenismo e dos direitos humanos, como o Núcleo de Diálogo Candomblé-Católico-Umbanda e algumas ações do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic).

O estudo antropológico foi feito baseado em pesquisa documental, observação, coleta de depoimentos e entrevistas com pessoas de grupos afros, católicos e evangélicos. A tese A cor da fé: “identidade negra” e religião foi defendida em 2017 no Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sob orientação do professor Vagner Gonçalves da Silva e co-orientação da professora Emmanuelle K. Tall. Atualmente Rosenilton Oliveira é professor da Faculdade de Educação (FE) da USP.

Mais informações: e-mail rosenilton.oliveira@usp.br, com Rosenilton Oliveira


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