Regionalização do orçamento público revela distribuição desigual de recursos em SP

Grupo de pesquisa da USP que investiga a relação entre território, raça e gênero acaba de lançar livro sobre o potencial da despesa pública para redução de desigualdades sociais

 23/05/2024 - Publicado há 6 meses     Atualizado: 24/05/2024 às 19:00

Texto: Tabita Said

Arte: Joyce Tenório*

Regionalização do orçamento público permite que o planejamento seja orientado para combate às desigualdades sociais – Fotomontagem de Jornal da USP com imagem de Halley Pacheco de Oliveira/Wikimedia Commons/CC BY-SA 3.0

Diferentes pesquisadores da arquitetura, urbanismo e direito se uniram, ainda na pandemia, para investigar e detalhar os gastos da prefeitura de São Paulo para além de seu orçamento total. A proposta era conhecer a despesa pública no território paulistano identificando a dinâmica dos gastos municipais por atividade e por território. A partir de levantamentos e análises regionalizadas do plano diretor da cidade, o grupo pretende propor políticas públicas que possam reduzir desigualdades utilizando como ferramenta o próprio orçamento público. 

“Mas, pensando esse território de forma inclusiva, de forma a reduzir desigualdades, ser sustentável e, ao mesmo tempo, ter recursos para financiamentos dentro das regras que o direito nos coloca”, afirma Ursula Peres, professora do curso de Gestão em Políticas Públicas da EACH e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) ao Jornal da USP

Ursula Peres - Foto: Arquivo pessoal

Ursula é uma das coordenadoras do Grupo de Pesquisa desenvolvido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) Produção do Espaço Urbano e Finanças Contemporâneas: O Papel do Fundo Público. O grupo, que segue ativo, produziu um seminário de pesquisa debatendo o financiamento e a governança do desenvolvimento urbano, em 2020. 

“A articulação entre o planejamento urbano e o planejamento orçamentário é fundamental para que a gente consiga implementar as ações de diminuição das desigualdades e aproximar os cidadãos dos serviços e equipamentos públicos”, destaca Luciana de Oliveira Royer, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e co-coordenadora do mesmo grupo. Para a professora, não bastam diretrizes bem intencionadas sem metas e um planejamento orçamentário. “Não adianta pensar só em formato de planilhas. É preciso ‘territorializar’, porque as desigualdades têm raça, gênero e localização na cidade”, aponta.

Além dos seminários, parte do grupo acaba de lançar o livreto A regionalização do Orçamento Público no município de São Paulo: relevância para a compreensão de desigualdades, que aborda aspectos históricos e conceituais da regionalização orçamentária e alguns resultados obtidos na pesquisa. 

Luciana Royer - Foto: Currículo Lattes

De acordo com a publicação, a ideia da regionalização é a distribuição criteriosa, permitindo que o planejamento público seja orientado e empenhado no combate às desigualdades sociais da cidade. Em vez de tratar o planejamento da alocação de recursos públicos de forma isolada, a regionalização propõe a distribuição do orçamento público de acordo com as necessidades específicas de diferentes regiões.

Distritos com maior vulnerabilidade também concentram maior número de pretos e pardos

Já o porcentual de residentes negros em Moema, Alto de Pinheiros e Itaim Bibi é menor do que 9%

Mais de 20% dos domicílios abaixo estão localizados em favelas, enquanto Bela Vista, Cambuci e Consolação não contabilizam nenhum

Regionalização do Orçamento Público de São Paulo como ferramenta para compreensão das desigualdades socioespaciais é abordada em livro desenvolvido pela USP – Dados: EACH

“Os residentes de regiões periféricas, além de enfrentarem as desigualdades raciais e de gênero de forma mais acentuada, também lidam com a falta de acesso a serviços básicos, condições precárias de moradia e deslocamento, entre outras problemáticas, à luz do desenvolvimento de um planejamento público aparentemente omisso. Sendo assim, a regionalização da destinação do orçamento do município demonstra ser uma ferramenta importante e necessária para a modificação desse cenário, pois atuar de forma ordenada e racional é um pressuposto para que as políticas públicas transformem efetivamente a arrecadação de impostos em melhores condições de vida para a população."

O livro está disponível gratuitamente para leitura on-line ou download neste link: https://sites.usp.br/gpp/regionalizacao-do-orcamento-publico-no-municipio-de-sao-paulo/   

“Publicamos este livreto mostrando o caminho das pedras, mas a regionalização está em um processo que ainda precisaremos ir atrás de muitos dados, abrir mais o orçamento de São Paulo e usar. Porque uma coisa é abrir, outra coisa é falar para o gestor: ‘Você está aplicando onde mais precisa? Ou vamos ajustar melhor o indicador de redução de desigualdade, que já é criado?’. Então, agora, temos que criar mecanismos de monitoramento desse orçamento regionalizado”, propõe a professora Ursula.

Com a abertura das finanças e a identificação das necessidades por região, o próximo desafio está no investimento. “É fundamental que a gente consiga alocar os recursos públicos nos diversos lugares que necessitam desse recurso. Precisamos conhecer melhor os orçamentos de investimento e manutenção, para que possamos pensar em uma justa distribuição”, lembra a professora Luciana.

Distribuição de recursos e indicadores sociais

A iniciativa de produzir material sobre a regionalização do orçamento público da cidade tomou corpo a partir do edital de Consórcios Acadêmicos para a Excelência do Ensino de Graduação (Caeg), da Pró-Reitoria de Graduação da USP. Posteriormente, o grupo se expandiu envolvendo outras entidades. Atualmente, é composto de estudantes de graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA), Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), Faculdade de Saúde Pública (FSP), Centro de Estudos da Metrópole (CEM) – todos da USP –, além da Universidade Federal do ABC (UFABC) e profissionais da Fundação Getúlio Vargas, Fundação Tide Setubal e do Tribunal de Contas do Município de São Paulo. 

“Essa experiência é sobre o município de São Paulo e a gente conseguiu ter essa importante parceria para essa regionalização, na qual a gente vai pensando cada política pública e abrindo os dados regionalizados, disponíveis hoje para consulta social”, explica Ursula.

O Grupo de Trabalho (GT), com representantes do Tribunal de Contas, Secretaria da Fazenda, universidades e Fundação Tide Setubal, já elaborou estudos da regionalização de diversos gastos da prefeitura com Educação, Saúde, despesas com Pessoal e ações de Zeladoria, como a coleta e varrição do lixo. De acordo com estudos do GT, foi possível ampliar os dados de regionalização da prefeitura de São Paulo do ano de 2021 de 20% para cerca de 64% – excluindo encargos da dívida e aposentadorias, que foram considerados não regionalizáveis.

Expectativa de vida em São Paulo - Imagem: Reprodução/Observatório TCM
Deslocamento entre casa e trabalho em São Paulo - Imagem: Reprodução/Observatório TCM

Distribuição de recursos analisados a partir de indicadores sociais revela uma cidade de contrastes – Dados: Observatório TCM / SP

Utilizando uma metodologia de análise da alocação de recursos segundo a localização distrital, o grupo observou um aumento expressivo e importante para conhecer a despesa distribuída pelo território. Embora estejam em pontos opostos da cidade, o levantamento do GT identificou, por exemplo, que Cidade Tiradentes – no extremo leste da capital – e Parelheiros – no extremo sul – contam com as piores expectativas de vida e o maior tempo médio gasto no deslocamento ao trabalho em transportes públicos.

Ainda de acordo com estudos do grupo, este porcentual está muito abaixo da experiência de outras cidades: Buenos Aires tem 100% de seu orçamento regionalizado; Londres, 58%, e Berlim e Cidade do Cabo, cerca de 33%. O GT pretende conhecer, também, a regionalização da receita da prefeitura com IPTU, ISS e ITBI.

“É um processo complexo, demanda letramento para entender que a verba no território é fundamental para que possamos avaliar melhor a política pública. Cada secretaria finalística precisa abrir a sua área. A educação precisa regionalizar o dado da educação, e só a saúde sabe onde gasta. Na hora de fazer contrato, os gestores precisam dizer se aqueles remédios estão indo para todas as coordenadorias, ou apenas para a região norte ou sul. Quais escolas estão recebendo merenda naquele contrato? São todas ou apenas da subprefeitura de Ipiranga? Então, tem um esforço que é descentralizado”, avalia Ursula.

O grupo também está envolvido em uma formação de regionalização de gastos voltada para gestores de cidades. A pesquisadora conta que cidades como Belo Horizonte e Fortaleza já desenvolveram modelos de orçamento descentralizado. “Cada vez mais, há uma consciência de que se a gente quer um orçamento sensível a gênero, sensível a raça, a gente precisa descentralizar o dinheiro. E aí vemos se os equipamentos daquele território onde tem mais mulheres PPI [pretas, pardas e indígenas] estão recebendo recursos da mesma forma que aquele equipamento central, onde tem mais pessoas brancas e de maior renda.” 

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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