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Rap contribui para a formação social de cantores e jovens da periferia
A partir do rapper Mano Brown, pesquisa da USP analisa como os conselhos presentes nas letras de rap podem ajudar na formação política e social das pessoas
Rapper Mano Brown com Racionais MC's na Virada Cultural, em 2013 - Foto: Mumu Silva via Wikimedia Commons/Flickr/CC-BY-2.0
O rap se popularizou no Brasil por volta dos anos 1990. Influenciados pelo hip hop americano, os jovens das periferias de São Paulo passaram a usar o estilo musical como uma forma de relatar as dificuldades enfrentadas por aqueles que viviam na periferia. Mas, além de levantar críticas sobre a violência e a desigualdade social, as músicas do rap assumem outro importante papel: o de auxiliar o artista e o ouvinte na sua formação social, psicológica, política e econômica.
Foi o que o pesquisador Híkaro Diego de Queiroz, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, defendeu na sua dissertação de mestrado, intitulada O rap de formação: uma abordagem do narrador em Mano Brown. O pesquisador define o Rap de Formação como “o rap no qual o artista, após passar por uma transformação na sua forma de pensar, transmite essa transformação em suas músicas e atinge também o ouvinte”.
Para o cantor, a transformação ocorre a partir do momento em que ele começa a analisar, com um olhar crítico, a realidade na qual vive, reproduzindo essa análise nas letras de suas músicas. Para o ouvinte, essa transformação se dá por meio dos conselhos e “sermões” que costumam estar presentes nas letras das músicas, como pontua o pesquisador:
O rap é diferente de outro estilos musicais porque tem a particularidade de trazer um reflexo do que as pessoas estão vivendo e, através desse relato, trazer conselhos. Logo, a partir do rap, há uma troca de aprendizado entre ambos os sujeitos.
Híkaro Queiroz salienta que essa contribuição do rap na formação de jovens está na identificação: “Não é qualquer música que vai fazer você mudar de realidade, mas o choque da realidade, no qual o jovem se identifica com aquela música que está ouvindo, faz com que ele pense e reflita no que diz respeito a se formar como ser humano”.
Formado em Letras pela FFLCH, Híkaro defendeu seu mestrado no dia 17 de julho - Foto: Arquivo pessoal
Mano Brown
Para o seu estudo, o pesquisador analisou a trajetória de um dos principais cantores do gênero, o rapper Mano Brown. Nascido na capital paulista em 1970, Pedro Paulo foi criado na periferia da zona sul, entre o Capão Redondo e o Parque Santo Antônio. Seu interesse pelo rap começou na juventude, quando passou a frequentar o Metrô São Bento, local de encontro daqueles que praticavam o gênero. Sua primeira música, Pânico na Zona Sul, lançada em 1989, fez sucesso e chamou a atenção por escancarar, sem máscara ou filtro, o cotidiano violento da região onde morava.
Para relatar em suas músicas as dificuldades que vivenciava, Pedro Paulo criou o personagem Mano Brown. “O que Pedro faz é se autoenunciar: ele narra [através do Mano Brown] o que está na sua realidade. Eu procurei traçar como ele mesmo se projeta fazendo uma cronologia dele criança, adolescente e entrando na fase adulta.” Ao longo de suas músicas, entretanto, não vemos apenas relatos de problemas, mas sim críticas que contribuíram para uma mudança no pensamento do cantor.
Na juventude, percebemos o início do seu processo de transformação como pessoa e as dificuldades que viriam a surgir para atrapalhar esse processo. Uma dessas dificuldades é relatada na música Quanto Vale um Show:
Na fase dos 14 aos 17, o Pedro Paulo está muito ligado à questão de ter condições de comprar marcas famosas que estavam fazendo sucesso naquela época. Então há o agente manipulador do consumo e do status.
Brown recebendo o Prêmio APCA (2023) -Foto: Annelize Tozetto/amigosdaarte via Wikimedia Commons/CC0
Esse agente manipulador, que tentava induzir Mano Brown a escolher o caminho mais fácil para obter dinheiro, isto é, o do crime, é o mesmo que tenta induzir os jovens da periferia a fazer o mesmo: “O jovem quer ser visto e notado, então muitos acabam sucumbindo a esse sujeito manipulador e indo para o mundo da marginalidade por não terem uma formação, uma estrutura familiar ou apoio de alguém”. Diferente do Mano Brown, muitos não conseguem fugir desse ciclo e completar o processo de formação. É nesse contexto que o rap assume a função social de alertar o jovem para não cair na manipulação que sua realidade lhe apresenta.
Mudanças na abordagem
Na transição para a vida adulta, vemos o amadurecimento de Mano Brown como ser humano, ser pensante e intelectual. Essa transformação é refletida no álbum Raio X Brasil, que está repleto de músicas que abordam temas políticos, como racismo, pobreza, agressão policial e a vida dos jovens negros na periferia. “Em Raio X Brasil, ele está num processo reflexivo muito grande sobre sua posição social, aonde ele já chegou, o que ele já conquistou e a realidade daquelas pessoas que ainda continuam na periferia”.
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Lançado em 1993, o álbum teve grande repercussão pela escolha da narrativa que o cantor passou a recorrer em suas músicas para chamar atenção dos jovens. Queiroz explica que, nos álbuns anteriores, Pedro Paulo usava apenas conselhos. “No começo, temos um Mano Brown professor, que passa conselhos para os jovens. Isso não faz efeito, porque o jovem de periferia não quer ouvir sermões. O rapper enxerga isso e muda a abordagem dele para a narrativa de testemunho.”
Na nova abordagem, Mano Brown se coloca como testemunha ocular para narrar os acontecimentos: “[A música] Mano na Porta do Bar, conta a história de um homem que era um cidadão pacato, mas se envolveu com o tráfico de drogas e morreu. Em todo tempo, vemos que Mano Brown está ali presenciando o ocorrido. Ao invés de dar conselhos, ele constrói uma narrativa para dar o exemplo”, pontua Queiroz.
Você viu aquele mano na porta do bar
Ultimamente andei ouvindo ele reclamar
Da sua falta de dinheiro era problema
Que a sua vida pacata já não vale a pena
Queria ter um carro confortável
Queria ser uma cara mais notado
Tudo bem até aí nada posso dizer
Um cara de destaque também quero ser
Outra música de destaque, Homem na Estrada, relata a história de um ex-presidiário que, após cumprir sua pena, tem dificuldades para se reintegrar na sociedade devido ao preconceito. “[Essa música] faz o ouvinte pensar: ‘olha, o que acontece se você seguir esse caminho?’ Então conseguimos ver, a partir da mudança da narrativa, uma mudança na forma de pensar do cantor.”
Um homem na estrada recomeça sua vida
Sua finalidade, a sua liberdade
Que foi perdida, subtraída
E quer provar a si mesmo que realmente mudou
Que se recuperou e quer viver em paz
Não olhar para trás
Dizer ao crime, “nunca mais!”
O pesquisador defende que todo jovem precisa de uma formação. “Se não pelo rap, por outros fatores, como as políticas públicas, para que cada vez mais o jovem tenha esse processo de formação completo e consiga se encontrar.”
* Texto de Livia Lemos, da Assessoria de Comunicação da FFLCH
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