Uma pesquisa da USP que teve como principal objetivo identificar de que maneira a branquitude e as colonialidades estão presentes nas realidades da educação pública nas cidades de Maputo, Joanesburgo e São Paulo recebeu menção honrosa no Prêmio Capes de Tese 2023. A partir de entrevistas, questionários e outras atividades desenvolvidas com professores das três cidades, a pesquisa identificou como a branquitude e a manutenção de colonialidades afeta os currículos escolares, os comportamentos de educadores e as possibilidades de letramento racial nas escolas.
A tese Conexão atlândica: branquitude, decolonialitude e educomunicação em discursos de docentes de Joanesburgo, de Maputo e de São Paulo, de autoria da educomunicadora Paola Diniz Prandini, foi defendida no programa de pós-graduação em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, sob orientação da professora Maria Cristina Palma Mungioli. “Atlândica” não é um erro de digitação: Paola utilizou a expressão para indicar que seu estudo é resultado de diálogos e cooperações com pessoas não só dos dois lados do Oceano Atlântico, mas também do Oceano Índico.
Ativista e antirracista, a educomunicadora trabalha com a formação de docentes há 15 anos e, a partir de sua experiência, pôde observar no cotidiano das aulas o quanto a branquitude está presente nos discursos de educadoras e educadores do Brasil e de outros países.
Com relação às cidades que embasam sua pesquisa, ela diz que São Paulo, sua cidade natal, é um objeto natural de interesse. Joanesburgo, maior cidade da África do Sul, e Maputo, capital de Moçambique, entraram no estudo após visitas em que Paola notou semelhanças entre a realidade dessas localidades africanas e a da cidade brasileira, principalmente em relação à educação, que, segundo ela, ainda se dá de forma eurocentrada.
Branquitude brasileira, moçambicana e sul-africana
Paola lembra que a formação do Brasil se relaciona a uma diáspora africana, ou seja, é fruto do deslocamento, nesse caso, forçado, de africanos para o território brasileiro. De acordo com ela, os 350 anos de escravidão legaram ao País as amarguras desse processo, mas também a riqueza cultural que o constitui.
Em seu trabalho, a autora retoma e problematiza o mito da democracia racial, conceito baseado na ideia de que a miscigenação teria resultado na construção de uma relação harmoniosa entre brancos e negros e, portanto, na consequente inexistência de racismo no País. Essa mentalidade oculta a branquitude e todos os aparatos ligados a ela na estrutura social brasileira.
“Nós temos ainda um mito da democracia racial bastante evidente. [É] como se o nosso país não fosse alvo de uma branquitude enquanto hegemonia que constitui o que tem de mais genuíno no Brasil. Não é verdade porque, de fato, a branquitude transversaliza a realidade brasileira todos os dias, a todo tempo e em qualquer espaço”, afirma Paola.
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Já no contexto sul-africano, as implicações da branquitude são mais explícitas. Segundo a pesquisadora, essa situação pode ser explicada pelo Apartheid, regime de segregação racial implantado na África do Sul em 1948. Com o fim do regime nos anos 1990, a branquitude, antes escancarada, passa a ser multifacetada: se estabelece em diversas formas e graus na contemporaneidade.
“Parte da população branca sul-africana, por exemplo, utiliza mecanismos que buscam garantir um certo protecionismo de seus valores e de seus interesses, bem como a manutenção de seus privilégios historicamente adquiridos por meio dos processos de colonização e do Apartheid”, pontua.
Quanto à Moçambique, Paola explica que apesar do país não ter passado pelo Apartheid, ações com o mesmo objetivo segregacional foram implementadas. Com isso, ecos do período colonial ainda estão presentes no cotidiano do país, no modo de ser e mentalidade de quem vive no local.
“A branquitude impõe seus códigos a partir da manutenção das colonialidades, que podem ser percebidas no dia a dia de quem mora em Maputo até hoje. Um exemplo que posso citar é o fato de que, sendo uma mulher branca, quando caminho pelas ruas da cidade, raras são às vezes em que as pessoas negras não param para me dar passagem nas calçadas, como se eu tivesse um certo direito a ter prioridade em minha caminhada”, relata Paola.
Metodologia de pesquisa
Para desenvolver a tese, Paola selecionou 13 professores interessados em participar da pesquisa. Quatro eram da África do Sul, cinco do Brasil e quatro de Moçambique. Ela se preocupou em garantir a diversidade étnico-racial e de gênero da amostra de professores, ainda que o grupo fosse composto em sua maioria de mulheres negras.
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Os professores selecionados passaram por um percurso de atividades direcionadas à ideia de práxis educomunicativa. Primeiro, Paola apresentou aos participantes filmes que se passam em São Paulo, Maputo e Joanesburgo. O objetivo era usar os filmes como uma porta de entrada para os diálogos que seriam estabelecidos sobre a branquitude, colonialidades e decolonialidades. “Essa é a potência que o cinema traz: conduzir e transversalizar diálogos interessantes e ricos, a partir das narrativas cinematográficas”, diz.
A seguir, Paola realizou entrevistas presenciais e individuais, nas quais os professores falaram sobre os currículos das escolas de Maputo, Joanesburgo e São Paulo. Depois dos encontros, Paola pediu que os participantes criassem uma peça educomunicativa (texto, desenho, música etc.) sobre as discussões acerca da presença da branquitude e das colonialidades nos currículos educacionais, e também sobre como a educomunicação pode lutar contra essas ideologias.
Passadas essas etapas, a educomunicadora enviou um questionário on-line para que os docentes fizessem uma autoavaliação do processo de que participaram. Depois da devolutiva dos documentos, Paola analisou os dados coletados em todas as fases da pesquisa, indicando as conexões observadas nas narrativas dos docentes.
Visão dos professores
Na tese, Paola aponta que a maioria dos educadores de São Paulo indicou uma forte existência de concepções coloniais no cotidiano brasileiro. Também reconheceram a reprodução de um currículo escolar eurocentrado e a verbalização de ideias racistas por docentes. Além disso, os profissionais paulistanos relataram enxergar a relevância da educação decolonial e citaram a importância do letramento racial.
Na África do Sul, a maioria dos participantes também indicou a presença de concepções coloniais na cultura africana. Alguns dos docentes afirmaram que os currículos sul-africanos ainda são compostos de normas de uma educação eurocentrada, em que os valores coloniais seguem firmes no pensar e agir de quem compõe as escolas.
No cenário de Moçambique, Paola indica que as respostas dos educadores variaram muito em relação à branquitude. Apesar disso, em maior ou menor grau há por parte deles a percepção de que as concepções coloniais fazem parte da cultura do país, o que se reflete na escola. Segundo a pesquisadora, essa variação pode ser um indicativo da quase inexistência do debate sobre a presença e os impactos da branquitude.
Ao final da tese, Paola apresenta uma discussão acerca dos conceitos decolonialitude e educomunidades. A educomunicadora chama a atenção para a necessidade urgente de que as comunidades escolares se tornem educomunidades que tenham como objetivo “co-construir espaços de acolhimento em que o agir é coletivo, descentralizado, não hierárquico, dialógico e afetuoso”.
Glossário educomunicativo
Práxis educomunicativa
Relação entre a teoria e a prática dos processos educomunicativos.
Decolonialitude
Atitude decolonial necessária para descolonizar processos pedagógicos e mentalidades. O termo aparece em um livro de Cheikh A. Thiam, professor do Amherst College, nos Estados Unidos. No livro, Thiam comenta o pensamento de Léopold Sédar Senghor, escritor e ex-presidente senegalês que propôs a ideia de negritude, ao lado do poeta antilhano Aimé Césaire.
Educomunidade
Comunidade que segue os valores das comunidades africanas e da diáspora africana: estar em coletivo, em diálogo e em trocas não hierárquicas.
* Texto: Rosiane Lopes, do LAC – Laboratório Agência de Comunicação da ECA. Editado por Silvana Salles