Pós-doutorandos negros da USP reivindicam ampliação de ação afirmativa voltada à pesquisa

Em encontro que homenageou a escritora e ativista antirracista Sueli Carneiro, coletivo demandou uma maior institucionalização do programa de pós-doutorado voltado para pesquisadores negros

 29/05/2024 - Publicado há 6 meses     Atualizado: 03/06/2024 às 13:13

Texto: Silvana Salles e José Adryan*

Encontro de Pós-doutorandos negros - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Encontro promovido por coletivo reuniu pesquisadores negros da USP - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

O sistema de cotas transformou profundamente a cara do estudante universitário brasileiro. Porém, o perfil dos professores continua virtualmente o mesmo de 20 anos atrás. Essa contradição não passou despercebida pelos participantes do Encontro Sueli Carneiro e Kabengele Munanga de Pós-Doutorandos Negros e Negras da USP, realizado na última segunda-feira (27) no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. O encontro foi organizado pelo coletivo formado pelos bolsistas do Programa de Pós-Doutorado para Pesquisadoras e Pesquisadores Negros da USP, com o objetivo de debater a ampliação das políticas de ação afirmativa da Universidade no âmbito da pesquisa.

Homenageada do evento, a escritora e ativista antirracista Sueli Carneiro contrastou a imagem do auditório repleto de pesquisadores negros com sua experiência como estudante da USP, nos anos 1970. “Em 1972, a quantidade de pretas e pretos que tinha nesse campus aqui, na USP, a gente não enchia uma Kombi. Era um lá na Economia, um na Filosofia, era uma na Sociologia… Era isso. Então, vocês podem imaginar o que significa uma pessoa dessa geração olhar esse auditório, e é um auditório de pós-graduandos? É um escândalo, é uma transformação extraordinária que aconteceu! E foi o que as cotas fizeram, o que a luta por ações afirmativas construiu, transformar o campus universitário nesse espetáculo de diversidade que a gente pode desfrutar nesse momento. Sei perfeitamente que, se esse espetáculo é absolutamente evidente no corpo discente, no corpo docente ele não se realiza”, disse Sueli, que é uma das principais referências do feminismo negro no Brasil.

Sueli Carneiro - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Sueli Carneiro é fundadora do Geledés Instituto da Mulher Negra - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

A afirmação da escritora é amparada, em termos, pelos dados do Anuário Estatístico da USP. Em 2023, 23% dos estudantes de graduação se declararam como pretos, pardos ou indígenas. Para a pós-graduação e o pós-doutorado, os números são pouco precisos, pois a maioria não autodeclarou cor/raça. Já entre os professores, grupo sobre o qual se têm bastante dados, os pretos, pardos e indígenas somaram apenas 2,39% da categoria. A desigualdade racial cresce junto com a progressão de carreira dos professores. Enquanto no cargo de Professor Doutor 1 havia 42 docentes autodeclarados pardos e 16 pretos, entre os professores titulares – o topo da carreira – havia somente nove professores autodeclarados pardos e um indígena. Em 2023 não havia na USP nenhum professor titular autodeclarado preto.

O Programa de Pós-Doutorado para Pesquisadoras e Pesquisadores Negros foi criado pela Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) da USP justamente ao reconhecer esse cenário. O objetivo expresso do programa é contribuir para fomentar a diversidade do corpo docente da USP e de outras universidades públicas, apoiando pesquisadores negros para que possam disputar de forma mais competitiva as vagas de docentes em concursos públicos. O coletivo de bolsistas vem demandando da PRIP uma maior institucionalização do programa, a fim de garantir sua continuidade e ampliação.

Durante o encontro, o coletivo entregou uma carta com reivindicações à pró-reitora de Inclusão e Pertencimento da USP, Ana Lúcia Duarte Lanna, ao pró-reitor de Pesquisa e Inovação, Paulo Nussenzveig, e ao diretor de Mulheres, Relações Étnico-Raciais e Diversidades da PRIP, Rogério Monteiro. As demandas dos pós-docs foram referendadas pela Coligação dos Coletivos Negros da USP, que reúne 32 entidades de todos os campi da Universidade.

Atualmente, os pós-doutorandos contemplados pelo edital de 2023 estão em uma etapa de produção dos relatórios que deverão ser entregues à PRIP. Muitos deles solicitarão a prorrogação de suas bolsas de pesquisa para que possam concluir os projetos propostos. Segundo a professora Ana Lúcia Duarte Lanna, os relatórios dos pós-doutorandos serão encaminhados para avaliação de pareceristas especializados e servirão de base para a decisão da gestão da Universidade quanto à melhor forma de dar continuidade ao programa. “Nós vamos avaliar, em função dos resultados e das disponibilidades da USP, as possibilidades e os formatos de uma continuidade de ação nesse sentido”, explicou a pró-reitora ao Jornal da USP.

Mulher branca, com óculos, blusa preta e colocar com ornamentos na cor laranja
Ana Lucia Duarte Lanna é pró-reitora de Inclusão e Pertencimento da USP - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Secretária de Políticas de Ações Afirmativas, Combate e Superação do Racismo do Ministério da Igualdade Racial, a professora Márcia Lima saudou o programa da PRIP. “Eu acho que essa iniciativa desse pós-doc cobre uma questão que eu sempre chamei muito a atenção, que é a maior concentração de doutores em áreas das humanas e a necessidade que a gente tem de olhar e pensar a diversidade na ciência olhando todos os campos de conhecimento. Muito do que eu vi até o presente momento, e das pessoas e das escutas que eu faço, é sempre o relato da solidão de cientistas negros, negras e negres em outros contextos que não das humanas”, disse Márcia.

Integrante do coletivo de pós-doutorandos negros da USP, a farmacêutica Michelle Barão contou que o grupo passou a se organizar como uma entidade coletiva a partir da necessidade de enfrentar essa realidade de solidão dos cientistas negros. Ela lembrou que muitos pós-docs do programa vêm de outras universidades e estados. Dados da própria PRIP mostram que, entre os 50 bolsistas contemplados no edital de 2023, 20 vieram de outras regiões que não o Sudeste e 35 fizeram doutorado em outras universidades. Somente três pesquisadores do grupo iniciaram suas trajetórias acadêmicas na USP, ainda na graduação.

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“Quando a gente passou nesse edital, foi uma grande felicidade. Mas, ao mesmo tempo, a gente vive uma solidão, porque somos 50, 53 espalhados em todos os cantos da USP e enfrentando realidades diferentes, enfrentando dificuldades. Esse coletivo se forma dessa necessidade de se reconhecer, porque nas nossas unidades nós somos sozinhos, somos poucos. Eu, por exemplo, onde faço meu pós-doc sou a única negra do laboratório. Isso é um relato frequente. A gente normalmente é o único negro dos espaços (em) que a gente se encontra. Ou foi na graduação ou foi no doutorado, no mestrado…”, relatou a pesquisadora.

Mãe de duas crianças, uma delas diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista, Michelle também contou que seu projeto de pós-doutorado é o primeiro no Laboratório de Cosmetologia da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP que trata de fotoproteção especificamente para peles negras.

Isso ilustra como a diversidade impacta a própria produção científica e se reflete nas publicações científicas, participações em eventos acadêmicos, atividades de docência e parcerias internacionais desenvolvidas pelos pesquisadores – um levantamento interno do coletivo já identificou parcerias de bolsistas do programa da PRIP com a University College London, no Reino Unido, a Universidade de Coimbra, em Portugal, a New York University e a Harvard Medical School, nos Estados Unidos.

“As humanas se destacam muito por conta de estudar o tema das relações raciais. Portanto, ela automaticamente já atrai mais pessoas para isso. Mas eu acho que é crucial investir na diversidade na ciência, da ciência, e por isso um programa como esse é muito exitoso, porque a gente pode aumentar a participação de cientistas negros em todas as áreas”, disse a professora Márcia, que em 2024 completa 20 anos como docente do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

A professora Márcia Lima - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
No Ministério da Igualdade Racial, atualmente Márcia Lima está à frente da discussão sobre as cotas no serviço público - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Somos agentes civilizatórios desse País

Ao final da roda de conversa do evento, questionada sobre qual acreditava ser o papel dos pesquisadores negros na luta pela superação das desigualdades raciais, a homenageada Sueli Carneiro disse ter uma convicção profunda na tarefa civilizatória dos afrodescendentes brasileiros. 

“Eu acho que nós somos agentes civilizatórios desse país. Nós trazemos conosco todos os elementos necessários para transformar isso aqui, de uma democracia de baixa intensidade numa verdadeira democracia, numa verdadeira democracia racial. Tudo que nós aportamos como demanda e como reivindicação são os desafios para a realização da cidadania de todas as pessoas. Tudo que nós trazemos como demanda de superação do passivo que esta sociedade tem em relação a nós é a condição indispensável para civilizar esse país. Então, eu acho que a tarefa que vocês têm pela frente é simples, é fazer isso”, afirmou Sueli.

*Estagiário sob supervisão de Antônio Carlos Quinto

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