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Orgulho LGBTQIAPN+: funcionárias trans da USP falam sobre trabalho e identidade
Antes estudantes da Escola de Comunicações e Artes (ECA),
funcionárias comentam a luta pela igualdade e ocupação de
espaços formais de trabalho
De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, em pesquisas feitas desde 2020, apenas 4% de pessoas transgênero trabalham em empregos formais; somente 0,02% alcançou o ensino superior e 90% das mulheres trans já recorreu à prostituição para sobreviver. A associação estima que 70% das pessoas trans do Brasil não chegou a completar o ensino médio. Apesar de os dados ainda demonstrarem a exclusão social gerada pelo preconceito, a luta da população trans do País para ocupar espaços segue viva para além do mês do orgulho. Duas mulheres trans que trabalham na Escola de Comunicação e Arte (ECA) da USP relataram, em entrevista ao portal da ECA, suas experiências e desafios para ocupar espaços básicos de dignidade e sobrevivência.
Daniela Abbade é secretária do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV) da ECA. Ela conta que, um ano após terminar sua graduação em Publicidade e Propaganda na mesma instituição, prestou concurso para se tornar servidora da Universidade e que trabalhou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) antes de chegar à ECA como funcionária.
“A USP foi meu primeiro trabalho depois de me formar”
Daniela Abbade, funcionária da Pós-Graduação da ECA
“Todo esse universo da comunicação e das artes, da fantasia de contar histórias e de criar histórias era o que eu queria desde criança”, diz Alê Vaz Machado, funcionária do setor de doação e aquisição de livros da Biblioteca da ECA. Ela também é formada em Artes Cênicas, com especialidade em direção teatral, pela ECA. Alê explica que, depois de três anos de graduação, precisou trancar o curso, que era vespertino, para poder trabalhar. Depois de cinco anos, ela retornou ao ensino superior, se formando em 1999.
Alê relata que dava aulas particulares, mas que era difícil encontrar um emprego fixo, com o qual ela pudesse se sustentar. “Aí eu prestei o concurso e hoje, felizmente, eu estou na universidade onde me formei. Não na graduação que eu fiz, mas eu estou num ambiente que eu reconheço”, comenta. Quando entrou como funcionária da USP, em 2005, Alê trabalhou por 10 anos no Instituto de Química (IQ) antes de escolher a transferência para a ECA.
Já Daniela em pouco tempo vai mudar de função, uma vez que foi aprovada no último concurso da USP para o cargo de analista administrativa. Além do trabalho na USP, ela escreve romances sob o nome artístico de Daniela Funez. Seus dois primeiros livros são Disquete de 3,5″ Soviético e O êxtase derradeiro da vampira de Osasco. “Vou publicar esse ano meu terceiro livro, que é um romance na área de ficção e ficção científica”, afirma. Ela também trabalhou como atriz , atuando por um tempo na Companhia Os Satyros. “Eu explorei essa criatividade fora da publicidade, no teatro e na literatura”, comenta.
A transição “é como uma sobrevivência”
“Não é uma genitália que define se você é uma mulher ou um homem; o gênero ultrapassa esses limites”
Alê Vaz Machado, funcionária da Biblioteca da ECA
O processo da transição de gênero, descrito como muitas vezes desconfortável, assustador e até violento, “é como uma sobrevivência” para Alê. Não é somente uma transição física e estética, com terapias hormonais e alterações corporais, é um processo de quebra de paradigmas. “Quando a gente é trans, a primeira pessoa que você tem que lidar com preconceito é você mesmo, porque todos os preconceitos sociais estão embutidos em você”, aponta a funcionária.
Desde cedo, Alê se sentia diferente das outras crianças. No ensino médio, deixou o cabelo crescer e não conseguiu mais usar roupas masculinas. Contando sua história, ela ressalta que todas essas mudanças, por menores que possam parecer, são conquistas.
“Você vai indo aos poucos. Cada passinho é um território que você está conquistando”. Entre os 16 e 17 anos, também se aproximou do teatro, um ambiente mais acolhedor. “Foi importante para eu me posicionar como ser humano”
Olhar sobre a transgeneridade
Alê acredita que a geração atual tem mais suporte do que a sua geração teve, 30 anos atrás. “Se a pessoa não tiver muita dúvida pessoal e íntima quanto a isso, ela consegue fluir mais rápido na questão da hormonização e até chegar na cirurgia”, afirma. Os preconceitos, porém, continuam extremamente presentes, segundo Daniela. “Sempre teve e vai continuar tendo. Vão ter políticas que vão tentar punir, mas sempre vai existir.”
Depois da explosão das mídias sociais, Alê também acredita que há mais vozes ecoando e propagando a igualdade. Ela cita a deputada federal Erika Hilton e a cantora Liniker como exemplos. Porém, ainda há muito espaço para violência na internet. “Hoje, com o universo digital se tem mais informação, mas também se tem mais desinformação”, comenta.
A funcionária avalia que a população trans ainda necessita ser normalizada. Comparada à população total do Brasil, pessoas transgênero ou não-binárias totalizam 2% (cerca de 3 milhões de indivíduos), segundo um estudo publicado pela Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB) em 2021. “A gente não precisa crescer em população, não é isso. A gente só precisa ser normalizada, mesmo que a gente continue sendo cinco em um milhão. A gente só quer circular normalmente sem ter que lutar para ser”, explica Alê.
Durante os anos 1980 e 1990, período de sua adolescência, havia muito menos referências conhecidas de pessoas trans do que hoje em dia. Uma referência marcante para a funcionária foi Roberta Close, uma das mais famosas modelos da época. Em um memorável dia de sua adolescência, Alê estava no dentista e se deparou com uma revista Marie Claire que continha uma entrevista da modelo contando a sua visão sobre sua transexualidade.
“Eu abri aquela revista e falei ‘caraca, mano, sou eu, né?’”, conta, emocionada. “Li aquilo e me desceu como um copo d’água quando você tá com muita sede”
Alê Machado
Ambiente acolhedor
Daniela conta que quando foi transferida da FAU pôde escolher entre duas unidades da USP e acabou elegendo a ECA. “Eu preferi vir para cá devido à proximidade e familiaridade com o ambiente, e por acreditar ser um lugar mais interessante para trabalhar com mais autonomia”. Ela explica que, por trabalhar sozinha em uma sala, acaba não tendo muito contato com outros funcionários do departamento, mas que as trocas são boas. “Minha recepção foi boa, tanto pela minha chefe, pessoa que tenho mais contato, quanto pelos outros funcionários e professores”.
A servidora comenta que tem muita afinidade com o ambiente e as pessoas da ECA. “Desde quando era aluna, sempre gostei mais dos círculos sociais da ECA, eu me encaixei bem aqui”
Já Alê conta que quando teve a oportunidade de transferência da Química, optou pela ECA por ser, em suas palavras, “uma terra conhecida, um local como se fosse minha cidade natal”. Ela conta que a escola tem um ambiente muito aberto à comunicação. “Essa abertura é como um abraço, um beijo, um toque.” Ela ressalta que gosta muito de trabalhar no setor de doações e aquisições da biblioteca, pois, além dos livros, pode ter contato com o universo de mídias, como CDs e DVDs.
Sobre a diferença da ECA percebida como aluna e funcionária, Alê diz que agora ela conhece o backstage do funcionamento das coisas. “Hoje, você vê uma diversidade muito maior. A USP está muito mais aberta para os alunos, tem muito mais inclusão.” No cenário da transexualidade, ela conta que é difícil discernir quando alguma atitude negativa é tomada por conta do preconceito ou não. “Quando você recebe um não, você não sabe se [é um] não pelo que tem que ser ou se é um não com viés transfóbico”, explica Alê.
Segundo uma pesquisa realizada em 2024 pela Vagas, empresa de tecnologia para o setor de recrutamento e seleção, pessoas trans recebem, em média, 17% a menos que pessoas cisgênero, e essa diferença pode chegar a 26%. Para a funcionária, isso não é muito presente na USP, uma vez que os salários dos servidores públicos são previamente definidos nos editais dos concursos e não há diferença salarial no momento da contratação.
Daniela acredita que, atualmente, há um esforço maior para incluir pessoas trans na maioria dos setores da sociedade, mas é um movimento carregado de muitos padrões sociais. “Uma vez que não é mais possível interromper a ocupação dos locais por pessoas trans, a sociedade precisa controlar e até se aproveitar desse fluxo, assimilando esses grupos como novos grupos consumidores”, afirma. Também diz haver a criação de moldes de pessoas trans exemplares, que, normalmente, estão dentro dos padrões binários de gênero e têm uma postura “mais negociável e dócil”. À margem da sociedade, ficam as pessoas que não se enquadram nessa lógica, como pessoas periféricas e de outros locais, “que não podem ser assimiladas como consumidoras em potencial”, destaca Daniela.
Apesar das iniciativas de inclusão da USP, com a criação, em 2022, da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), Alê e Daniela lembram da necessidade de órgãos públicos e empresas se modernizarem para acolher a diversidade. “A USP foi uma das primeiras a colocar nome social, mas até hoje é usado aquele modelo antiquado de ter que colocar o nome social e o nome morto também”, lembra Daniela.
Como conselho, Alê indica que pessoas trans em busca de espaço no mercado de trabalho, nos estudos e na vida, nunca deixem de ser quem realmente são.
“Siga seu coração, procure aliados, forças amigas e lugares que você possa existir com dignidade. Se reconheça como uma força humana em potencial, nada além disso. Tenha resistência, seja forte mesmo quando não estiver forte!”
*Texto de Isabel Briskievicz e Sophia Zizza, com edição de José Adryan, estagiário sob supervisão de Tabita Said
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
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