Mães atendidas em abrigo público continuam sendo vítimas de violências de gênero

Capacitação e acompanhamento precários dos serviços assistencialistas afastam vítimas de solução

 19/12/2024 - Publicado há 3 meses

Texto: Guilherme Bianchi*

Arte: Beatriz Haddad**

“Em 2023, o Brasil teve o maior número de feminicídios desde que o crime foi tipificado. Segundo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com 1.463 vítimas, país registrou uma morte a cada seis horas no ano passado” – Foto: Freepik

Na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP uma pesquisa realizada com mães, vítimas de violência de gênero, apresenta alterações na percepção de maternidade dessas mulheres. De acordo com o estudo, enquanto algumas vítimas mantêm o instinto materno, outras rejeitam a maternidade. A tese foi defendida por Ricardo Estevam, psicólogo especialista no entendimento de emoções e reações frente à maternidade. Elisabeth Meloni Vieira, professora do Departamento de Saúde e Sociedade da USP, foi a orientadora.

Durante a pesquisa, dez mães, vítimas de violência de gênero acolhidas em um abrigo na cidade de São Paulo, foram entrevistadas no decorrer de 2022. Apesar de serem vítimas de uma situação comum, as entrevistas revelam diferentes interpretações do ser mãe pelas participantes. O psicólogo explica que, o filho gerado a partir de um estupro, é gatilho dos episódios de abuso doméstico sofrido por algumas mulheres. 

Cobranças e punições ao pedir socorro

A tese surgiu a partir da constatação do psicólogo da falta de capacitação dos serviços públicos de atendimento à mulher-mãe vítima de violência. Ao analisar o abrigo onde essas mulheres eram atendidas, Ricardo identificou cobranças e punições na acolhida dessas mulheres. Em meio as visitas ao serviço, o pesquisador notou que as mulheres são obrigadas pelo regulamento interno da casa de acolhimento a cuidarem de seus filhos por toda a estadia sem uma rede de apoio, impossibilitando a busca por um trabalho e ajuda psicológica. Sem serviço de higiene disponível, as mães ainda precisam limpar e organizar o abrigo.

O centro analisado faz parte do conjunto de Centros de Acolhida para Mulheres em Vítimas de Violência (CAMVV) da cidade de São Paulo. O CAMVV é um serviço municipal sigiloso que acolhe mulheres vítimas de violência, com ou sem filhos, e que faz parte da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social. Para garantir maior segurança às vítimas, os endereços desses locais jamais são divulgados. Antes de iniciar o estudo, o autor entrou em contato com as cinco unidades do CAMVV da cidade paulista, porém apenas uma aceitou participar da pesquisa.

O tempo de acolhida é outra crítica do psicólogo a respeito do serviço público oferecido. A casa abriga as vítimas durante seis meses, período considerado insuficiente pelo pesquisador. “Tem mulheres que estão na violência há 20 anos, você não tira isso em 6 meses”, critica ele.

Ao longo das conversas, situações antes não discutidas na casa foram percebidas por Ricardo: “eu nunca falei nada disso. Nunca contei para ninguém, nem no abrigo”, relatou uma das mães. No abrigo, as mulheres são proibidas de terem crises de ansiedade ou raiva e devem informar todos os seus compromissos e horários ao longo do dia. Em caso de atraso ou descumprimento das regras de comportamento, elas são advertidas. Com três advertências, são desligadas do serviço.

Ser mãe na violência

A tese mostra ainda variação na relação mãe-filho entre as entrevistadas. Em maior parte, as participantes enxergam os filhos como um companheiro diante da violência de gênero. Para impedir que o filho sofra, algumas mães enfrentam o agressor ou saem de suas casas ao perceber risco à criança. Em contraponto, outras mães rejeitam as crianças frutos do abuso sofrido.

“A violência é muito clara para as vítimas. Elas sentem o cárcere, sabem do risco de morte, sabem que vão apanhar”, afirma o psicólogo. Com vergonha das agressões, é comum a vítima inventar um acidente ou se isolar, destaca a pesquisa.

Em 2023, a Central de Atendimento à Mulher, do Governo Federal, recebeu quase 75 mil denúncias de violência pelo 180 – Imagem

Durante as entrevistas, as vítimas sentem-se envergonhadas e caem em emoção ao falarem sobre os episódios de agressão. A dependência emocional e financeira atreladas à violência sofrida são motivos da vergonha.

Ameaças à família e aos amigos da vítima também são mecanismos do agressor. Resultados da pesquisa mostram que a mulher violentada tem poucos amigos e, com o abandono da família, enxergam a necessidade de reaproximação do agressor para a própria subsistência e do filho. Das 10 entrevistadas, 6 voltaram para a casa de seu agressor após o período de acolhimento.

Serviços preconceituosos e desatualizados

Para o psicólogo, a atual metodologia de acolhimento do abrigo reforça um papel social de gênero: “Essas mulheres são submetidas à violência por uma questão social, a validação da mulher só acontece quando tem um homem ao lado”. A falta de interesse político para solucionar o problema e criar políticas públicas é motivo de reclamação.

“O serviço é fundamental, ele salva vidas. Mas ele precisa ser melhorado, a política para as mulheres vítimas de violência está desatualizada. Hoje, você atende a mulher do século 21 com uma política do século 20”

Ele acrescenta que o programa deve ser repensado também para as crianças, com atividades socioeducativas e acompanhamento escolar e psicológico. Iniciativas que proporcionem maior independência para estudar, obter capacitação profissional, orientação financeira e acompanhamento psicológico para essas mulheres também devem ser consideradas.

*Estagiário sob supervisão de Antônio Carlos Quinto

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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