Invisibilidade marca as vidas de mulheres com deficiência em situação de violência doméstica e familiar

Pesquisa realizada na Faculdade de Direito (FD) da USP analisa as diversas formas de agressões cometidas contra mulheres com deficiência

 Publicado: 22/07/2024

Texto: Antonio Carlos Quinto

Arte: Beatriz Haddad*

Thaís Becker (no centro) profere palestra no lançamento da série de vídeos educativos “Porque esse é uma tema de Direitos Humanos das Mulheres?” – Foto: Acervo CDHM/USP

Foi a partir de uma experiência de vida, após ter passado por uma situação de discriminação em seu ambiente profissional, que a pesquisadora Thaís Becker Henriques decidiu investigar sobre as barreiras que incidem  no acesso de mulheres com deficiência à rede de enfrentamento à violência doméstica e familiar. Esse trabalho resultou na pesquisa de mestrado intitulada “Às vezes, eu acreditava que eu não tinha valor”: percepções de mulheres com deficiência e da Rede de Enfrentamento sobre a violência doméstica e familiar contra mulheres com deficiência, que foi realizada na Faculdade de Direito (FD) da USP, sob a orientação da professora Gislene Aparecida dos Santos, docente da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), também da USP.

No ano de 2015, Thaís, então estudante da graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) tornou-se pessoa com deficiência após um acidente de carro. Ao retornar ao curso no semestre seguinte, no início de 2016, Thais, que estava na sétima fase do curso, também retomou o estágio obrigatório que fazia. “Antes mesmo do acidente, eu já havia participado, enquanto estagiária, de algumas audiências de conciliação, mas aquela seria a primeira enquanto pessoa com deficiência”, relembra. 

Thaís Becker Henriques - Foto: Arquivo pessoal

Esperar lá fora…

Nesta primeira experiência de Thaís, ela pôde perceber as barreiras que incidem cotidianamente na vida das pessoas com deficiência. “Fiquei muito preocupada com o trajeto até o Fórum, com a acessibilidade, mas consegui chegar até a audiência”, conta ela, que hoje trabalha como assessora jurídica no Ministério Público de Santa Catarina, em Florianópolis.

Tudo pronto para a audiência, quando a conciliadora nomeada para cuidar do caso disse ao homem que era a parte acompanhada por Thais: “Por favor, peça para sua irmã esperar lá fora..”. Foi nesse momento que Thaís percebeu que o fato de ela estar em uma cadeira de rodas interferiu na interpretação das pessoas em relação à sua situação.

Eu já tinha estado naquele mesmo ambiente, antes de me tornar uma pessoa com deficiência, e nada havia acontecido. Mas quando retornei enquanto mulher com deficiência, a conciliadora sequer me dirigiu a palavra"

E foi esse o “gatilho” que levou Thaís a estudar o quanto as mulheres com deficiência passam por violências das mais variadas formas. E foi lá mesmo, na UFSC, que tudo começou, quando Thaís cursou uma disciplina optativa chamada Estudos da Deficiência, que era ministrada no curso de Psicologia da universidade. Além do curso, Thaís se dedicou a buscar livros sobre o tema. “Um livro chamado ‘O que é Deficiência’, da Débora Diniz mudou toda a minha percepção sobre o assunto”, relata a pesquisadora. “A deficiência, enfim, é uma construção social, enquanto experiência de discriminação, ela é produzida coletivamente”, descreve. “Naquela oportunidade, eu entendi que a discriminação a que eu era (e ainda sou) submetida, não era (e não é) minha culpa”. Depois de formada, Thaís começou a participar de grupos de mulheres com deficiência, como o Coletivo Feminista Helen Keller.

Violência normal?

Acessando redes de contatos, coletivos e grupos de mulheres com deficiência, Thaís passou a ouvir opiniões e manifestações de mulheres com deficiência até chegar à professora Gislene, na FD da USP, quando iniciou a sua pesquisa de mestrado, em 2020.

À medida que seus estudos evoluíam, ela foi se deparando com relatos que mostravam as mais variadas formas de violência a que eram submetidas as mulheres com deficiência. “Não somente mulheres com deficiência física, como eu, mas também mulheres com deficiência auditiva, intelectual, visual e outras”, conta.

Foi quando ela estruturou sua pesquisa em três dimensões de impacto das barreiras às mulheres com deficiência: a identificação das situações de violência doméstica e familiar; a (im)possibilidade de rompimento do ciclo dessas violências; e o (não) acesso às redes de enfrentamento.

Tais caminhos permitiram a Thaís identificar que, entre as violências doméstica e familiar, a mais relatada em sua pesquisa foi a psicológica, seguida das modalidades de violências física e sexual.

Com relação às redes de enfrentamento e apoio às mulheres em situação de violência, Thais analisou o Sistema Único de Saúde (SUS), o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o Sistema de Justiça e a segurança pública. Ela tomou como universo de sua pesquisa a cidade de Florianópolis, ouvindo em entrevistas 15 mulheres com deficiência e 18 profissionais da rede de enfrentamento à violência doméstica e familiar.

Integrantes da Clinica de Direitos Humanos das Mulheres (CDHM) da USP no lançamento da série de vídeos educativos “Porque esse é uma tema de Direitos Humanos das Mulheres?” – Foto: Acervo CDHM/USP

Dependência do agressor

As portas de acesso às buscas por ajuda de boa parte das mulheres com deficiência e vítimas de violência, como constatou Thaís, são as delegacias e os serviços de saúde. “Contudo, nem todos estão devidamente preparados para tais atendimentos”, destaca a pesquisadora. Ela observa que, muitas vezes, é o próprio agressor que leva a mulher a um serviço, como a um hospital, por exemplo. “E, por vezes, ao estar na presença de quem a agrediu, nem sempre essa mulher fará uma denúncia formal”, lamenta Thaís.

De acordo com Thaís, seu estudo aponta para possíveis providências que poderão aperfeiçoar os serviços da rede de enfrentamento. Ela defende a implementação de uma política pública de cuidado, a garantia de melhores condições de trabalho para as profissionais da rede e um olhar atento às barreiras que estão nos serviços e que obstam o acesso de mulheres com deficiência, sejam elas físicas, atitudinais, comunicacionais, informacionais. “Posso dar como exemplo a ausência de intérpretes de Libras na maioria dos locais de atendimento”.

Por fim, Thaís considera que mesmo na academia existe a necessidade de maior reflexão sobre a temática da deficiência. “É preciso que sejam incentivados mais estudos e pesquisas sobre tais temas e também que a produção acadêmica seja de fato acessível às pessoas com deficiência”.

Mais informações: thaisbeckersilveira@gmail.com

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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