Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Há exatos 50 anos, a prática da capoeira foi inserida e consolidada na USP

Mestre Gladson foi o responsável por trazer a capoeira para a USP e, hoje, no auge dos seus 80 anos, comemora os frutos dessa ousadia

 03/11/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 04/11/2022 às 17:34

Texto: Camilly Rosaboni

Arte: Guilherme Castro

O que você pode fazer em 50 anos? O mestre Gladson de Oliveira Silva não somente trouxe a capoeira para o Centro de Práticas Esportivas (Cepê) da USP, como consolidou a sua visibilidade, sobretudo em iniciativas fora do Brasil. Hoje, comemorando seus 80 anos de vida, Gladson espera adquirir ainda mais conhecimentos. “Eu me considero um eterno aprendiz na universidade da vida. Não é dizer ‘agora ele é mestre de capoeira e acabou’. Então, a gente tem que dar continuidade a isso”, afirma Gladson. 

Para o mestre, a continuidade dos trabalhos com a capoeira também se dá em levar novas possibilidades à juventude. “Não é levar mais uma luta para uma garotada que já tem a faca, o facão e a espingarda. É para eles saberem seu potencial organicamente, como ser humano, para a gente poder melhorar”, explica. 

Em entrevista ao Jornal da USP, mestre Gladson e mestre Vinícius Heine, atual professor de Capoeira no Cepê, disseram perceber uma mudança na aceitação da capoeira nos campi acadêmicos. “A gente viu uma valorização progressiva da capoeira, ganhando mais espaço e respeito. Sabemos que existe um preconceito contra a capoeira por ser uma atividade oriunda de camadas menos privilegiadas da sociedade, principalmente da população negra. Mas todo o trabalho desenvolvido pelo mestre Gladson vem fazendo essa desconfiança ser quebrada”, observa Heine. 

De acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a capoeira foi trazida ao Brasil por volta do século 17 por africanos, no período da escravidão brasileira. A prática da capoeira permitia a interação social entre os escravizados que, muitas vezes, não falavam a mesma língua, por serem oriundos de diferentes regiões e etnias da África. A capoeira promovia fortalecimento corporal diante dos pesados trabalhos que desenvolviam aos senhores de engenho, assim como possibilitava vencer a figura do Capitão do Mato durante fugas do cativeiro. “[É uma forma de] resistência contra a opressão do sistema de escravidão da época. Era uma das manifestações que [os escravizados] usavam para se fortalecer enquanto coletivo. Eles usavam o corpo como arma”, explica Heine.

A música usada na capoeira era uma maneira de disfarçar a prática, pois os senhores e capatazes acreditavam que era apenas uma dança. Assim também se consolidou o verbo jogar capoeira. Por um acaso, foi justamente a música que atraiu o mestre Gladson para a capoeira. “[Um amigo de Gladson falou] ‘eu estou escutando um berimbau tocar’, berimbau tocar? O que é isso?”, conta Gladson. Em seguida, foram ao local da música e Gladson conheceu seu primeiro mestre de capoeira, Paulo Gomes. Mais tarde, com a profissão de educador físico em formação, Gladson foi convidado a mostrar os valores educacionais da capoeira no Cepê. Entretanto, o mestre ressalta que esse não foi um trabalho fácil. “Se a capoeira ainda hoje é malfalada no Brasil, você imagina há 50 anos atrás, dentro da USP”, observa Gladson.

Gladson de Oliveira Silva - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Gladson de Oliveira Silva - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Por muito tempo, a capoeira foi perseguida no Brasil. Sua atividade chegou a ser considerada crime no primeiro Código Penal da República, em 1890.

CÓDIGO PENAL DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. DECRETO NÚMERO 847, DE 11 DE OUTUBRO DE 1890. Capítulo XIII, Dos vadios e capoeiras.

Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem: andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordem, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal. Pena: de prisão celular por dois a seis meses. Parágrafo único. É considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes ou cabeças, se imporá a pena em dobro.

Somente 40 anos depois, em 1937, o então presidente do Brasil, Getúlio Vargas, assistiu a uma apresentação de capoeira, gostou e legalizou a prática. Muito mais tarde, em 2014, a Roda de Capoeira recebeu o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). 

Diante das adversidades para a consolidação da capoeira nesses anos, “agradeço ao Universo de Deus como um todo pela minha ousadia de realmente mostrar o valor dessa nossa arte e cultura brasileira”, ressalta Gladson. “A roda de capoeira é uma oportunidade ímpar de mostrar seus reais valores e exemplificar aquilo que falta pelo mundo”, complementa, observando a importância da capoeira na responsabilidade com os horários e com o cuidado dos instrumentos.

Os elementos da capoeira

Antes de iniciar a roda da capoeira, é preciso alguns preparativos. O mestre de capoeira arma e afina o berimbau, para que seu som saia perfeitamente, montando a “orquestra” junto com os pandeiros. No caso da capoeira regional, praticada pelo Mestre Gladson e o Mestre Vinícius no Cepe, a orquestra é formada por um berimbau e dois pandeiros. Os participantes se juntam em roda. “A roda é um elemento central nas manifestações da cultura afro-brasileira, como a capoeira, o samba, o coco, o maculelê, entre outras”, detalha Heine. “Na roda, todos estão integrados, todos se veem, todos participam, e por isso ela é mais democrática e horizontal”, complementa. Muitos permanecem descalços para um melhor contato com a natureza. 

No começo da roda, canta-se um tipo específico de música: a quadra, também chamada de quadra de Bimba, faz referência ao Mestre Bimba, criador da capoeira regional. Em seguida à quadra, vêm a chula e os corridos, outros tipos de música. A dupla só entra na roda para jogar quando são cantados os corridos e quando o mestre faz um sinal, abaixando o berimbau. A partir disso, a dupla faz movimentos de ataque, de defesa, desequilibrantes e acrobáticos. As pessoas que estão passando ao redor também param para observar a prática. O mestre conduz a roda. 

O título de mestre integra os níveis de formação da capoeira, sendo o último em onze estágios, o que pode variar entre as escolas de capoeira. É necessário muito estudo e prática na capoeira para se tornar mestre, envolvendo seus movimentos, músicas, instrumentos, cantos, ritmos, rituais, história, filosofia e um trabalho desenvolvido e consolidado com diferentes públicos. “É uma forma pedagógica de construir um caminho de aprendizado e um caminho de evolução dentro da arte marcial”, expõe Heine. Cada mestre recebe uma corda branca, o que pode variar de grupo para grupo em seu sistema de graduação. “Se eu tirar isso [o cordão], eu estou sem o meu uniforme da capoeira. É isso que diz quem eu sou no olhar. Agora, quem diz que realmente eu sou isso [o cordão] é o meu ser interior educado direitinho. Esse é o valor da capoeira”, diz Gladson.

Vinícius Heine - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Vinícius Heine - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

O grande aspecto convidativo da capoeira é sua musicalidade, com suas quadras, corridos, chulas e ladainhas. Cada escola prepara o seu repertório, com diversos temas, podendo falar sobre a história da capoeira, seus mestres, sua filosofia, mas também sobre situações cotidianas ou qualquer outro tema. “A música é um canal de expressão poética do capoeirista”, afirma Heine.

A capoeira é um jogo tipicamente amistoso, mas há diferença entre jogar com e contra alguém. Jogar com significa respeitar o outro em sua integridade física e moral, para ambos aperfeiçoarem seus movimentos e seus aspectos emocionais. No entanto, jogar contra alguém significa que este é um adversário a ser vencido, sem necessariamente respeitar sua integridade física. 

Capoeira inclusiva

No Cepê, a capoeira é para toda a comunidade, de todas as idades e de todas as origens. Existem aulas para crianças, para a terceira idade, pessoas com deficiência, intercambistas e muito mais. 

Ronald Hoyos, intercambista em Educação Física na Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) da USP, faz parte do Grupo de Capoeira do Cepê desde agosto. Ao Jornal da USP, Hoyos disse que acompanha a prática no centro esportivo porque busca seguir seus modelos para levar a capoeira à Universidade de Antioquia, na Colômbia. “Há uma certa incredulidade nas universidades. Os diretores de lá precisam de evidências de que aquilo é possível. Vocês têm tudo escrito e tudo bem falado, em livros, nas clínicas etc. Serve de referência para começar o processo lá”, afirma o intercambista. “Os mestres Vinícius e Gladson vêm tendo um esforço muito grande para a capoeira ter um espaço na universidade”, complementa.

Fernanda Paiola e sua filha, Beatriz Paiola, de 9 anos, começaram a frequentar a capoeira do Cepê recentemente, por recomendação de seu mestre, Cláudio Dandara. “Ele me disse que o Mestre Gladson tinha uma boa filosofia, um bom trabalho e era uma boa pessoa”, afirma Fernanda. Para a nova aluna de Heine e Gladson, a capoeira é muito importante para a educação das pessoas, inclusive para a sua filha Beatriz. “A capoeira ensina muita disciplina, desenvolve reflexo, educação, hierarquia, respeito, a parte física; além da musicalidade”, ressalta Fernanda. Enquanto isso, sua filha se diverte com a prática. “Eu sempre gostei, principalmente quando a gente faz a roda e joga todo mundo junto, além de os movimentos serem muito legais”, diz Beatriz.

17ª Clínica de Capoeira

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Um dos eventos mais tradicionais organizados pelo mestre Gladson, o Cepê irá realizar a 17ª Clínica de Capoeira entre os dias 25 e 27 de novembro. Realizadas bianualmente desde 1987, as clínicas são uma espécie de congresso que reúne mestres, praticantes, pesquisadores e admiradores de todo o Brasil. O evento valoriza a capoeira enquanto arte, cultura, educação, história e cidadania. As discussões tratadas no evento são relacionadas aos saberes corporais, musicais e filosóficos dos praticantes capoeiristas. “Com isso, a gente abriu um campo muito grande para o Cepê ser mundialmente conhecido”, afirma Gladson. Para participar, é necessário se inscrever pelo link. Há uma taxa de inscrição de R$ 150. A clínica acontece junto ao 1º Congresso Internacional de Capoeira que o Cepê organiza em parceria com a International Capoeira Association (ICA). 

No dia 25 de novembro, ocorrerá a apresentação de trabalhos – acadêmicos ou não – sobre a temática da capoeira. Em seguida, haverá uma mesa interinstitucional com os participantes: Mestre Mão Branca, presidente da ICA, Mestre Burguês, vice-presidente da ICA, Mestre Gladson, Vinícius Heine e o professor Emílio Miranda, diretor do Cepê. A programação do dia se encerra com homenagens à velha guarda da capoeira em São Paulo, mestres acima de 70 anos, com o tema A nossa ancestralidade em pauta. “Nosso objetivo é trazer a cultura popular, os saberes desses velhos mestres que, às vezes, não têm uma formação acadêmica, mas são grandes autoridades dentro do universo da cultura”, afirma Heine. “Independente se a pessoa não tem titulação, são outros parâmetros. O importante é toda a dedicação que teve ao longo da vida para a capoeira, os trabalhos que desenvolve, o comprometimento e a doação que fez ao longo da vida para a capoeira”, complementa.

No dia 26 de novembro, a programação segue com a oficina Capoeira, Educação e Cidadania, com os mestres Gladson e Heine. Logo após, ocorrerá a oficina Capoeira, Transdisciplinaridade e Espiritualidade, com o mestre Lourival Fernando Alves Leite, da ICA. Em seguida, haverá a palestra Pesquisando com a Capoeira: Alguns “gingados” éticos, humanizados e possíveis, com o contramestre Henrique Kohl (Tchê), do Departamento de Pesquisa da ICA, e a oficina de capoeira com o Mestre Levi, do Rio de Janeiro.

Além disso, haverá uma roda de interação, seguida da oficina Mestra Criança – HIIT na Capoeira e da palestra a Capoeira como Tratamento e Prevenção na Promoção de Qualidade de Vida da Sociedade, com o Mestre Wederson Rafael (Zói), da ICA. Posteriormente, haverá as oficinas Capoeira e Maculelê, com a Mestra Índia, e Musicalidade da Capoeira, com o Mestre Barrão, ambos do Departamento de Cultura da ICA. A programação se encerra com a palestra Capoeira Inclusiva, com Orli Santos Rosa, Mestre Ciência do Departamento de Capoeira Inclusiva da ICA, e com a oficina Interfaces Esportivas da Capoeira: MMA e outras possibilidades, do Mestre Catitu, do Departamento de Esporte da ICA. A oficina contará com participações de atletas. 

No dia 27 de novembro, ocorrem as oficinas de Capoeira Regional, com Mestre Paulão, e Movimentos Desequilibrantes, com os mestres Burguês, Mão Branca e Barrão. Em seguida, haverá a palestra Propósitos da ICA, com a participação de representantes das Diretorias da ICA. A programação se encerra com um Aulão de Capoeira, junto a todos os mestres presentes, muita cantoria e confraternização.

De 19 a 24 de setembro, o Cepê comemorou seus 50 anos de Capoeira. Em 1972, o Mestre Gladson fazia a proposta de trazer a capoeira para os campos esportivos da USP. Com aulas, apresentações, congressos, clínicas e diversas iniciativas culturais, a Capoeira contribui para a formação de centenas de pessoas e se torna uma referência educacional e cultural dentro e fora da USP. Com o Festival 50 Anos – Capoeira Cepeusp, houve uma ampla programação que visou a promover a capoeira enquanto arte, esporte e manifestação cultural. A comemoração foi ainda mais especial porque, no mesmo mês, o Mestre Gladson completou seus 80 anos de vida.


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