Estudo evidencia o sambista “Candeia” enquanto político e defensor da cultura e dos valores afro-brasileiros

Análise da trajetória do artista que destaca sua postura militante em defesa da preservação do samba é tema de doutorado defendido na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 22/02/2024 - Publicado há 5 meses     Atualizado: 26/02/2024 as 10:26

Texto: Antonio Carlos Quinto
Arte: Carolina Borin*

Candeia ao lado de Cartola em 1974. Imagem do Fundo Correio da Manhã - Foto: Domínio Público/Arquivo Nacional

Para muitos, o sambista Antonio Candeia Filho, o Candeia, é conhecido e identificado como um cantor e compositor de belos sambas. Mas a obra do artista ligado à escola de samba Portela, do Rio de Janeiro, sempre deixou evidente a sua postura política e crítica em relação aos rumos do samba e do carnaval, de um modo geral. A partir de um olhar atento sobre a arte de Candeia, que não se resumiu apenas às suas composições, o músico, educador e pesquisador Igor de Bruyn Ferraz desenvolveu seu estudo de doutorado intitulado “Quem quiser pode ir; eu vou ficar aqui”: política, antirracismo e identidade sonora no samba de partido-alto do Candeia. A pesquisa foi defendida na Escola de Comunicações e Artes (ECA) sob a orientação do professor Alberto Tsuyoshi Ikeda.

Dentre as motivações que levou Igor Ferraz a empreender o estudo, a experiência de ter realizado uma pesquisa de mestrado em que analisou parte da obra musical do sambista. Naquela oportunidade, o pesquisador elegeu como tema de seu estudo dois discos da coleção Partido em 5, volumes 1 e 2, que ele considera ainda inovadores. As análises, que constam no mestrado intitulado “Um samba sem poluição”: o partido-alto de Candeia em Partido em 5 Vols I e II, permitiram a Igor Ferraz considerar as obras como “um movimento de enunciação e realização político-cultural daquela expressão musical negra do Rio de Janeiro, da década de 1970”.

Neste doutorado, o músico e pesquisador destaca a postura de Candeia frente a três projetos que mostram a preocupação do sambista com as raízes do samba: a fundação do Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba (G.R.A.N.E.S.) Quilombo; o livro “Escola de Samba: a árvore que perdeu a raiz (1978)”, escrito em parceria com Isnard Araújo, e o lançamento de dois discos Lps intitulados Partido em 5, Vols 1 e 2 (1975 e 1976, respectivamente), analisados no mestrado. 

Como descreve o pesquisador, “a conjugação de tais eventos estabeleceram um movimento antirracista, cujas bases de sua enunciação política estavam atreladas ao maior símbolo cultural da identidade brasileira: o samba!”. “

Eu precisava debater de maneira um pouco mais ampla aquele evento sonoro dos dois discos. Afinal, tratava-se de uma reunião de sambistas fazendo o samba deles, no ambiente deles”. Ali, de acordo com Igor Ferraz, já ficava evidente a crítica de Candeia

Igor Ferraz - Foto: Arquivo Pessoal

“Esses sambistas se reconhecem no trabalho que fazem, que inventaram etc., e cujo pano de fundo, ou o resultado desse trabalho, é uma produção sonora”, descreve o pesquisador, acrescentando que “a crítica é justamente que eles estavam perdendo a primazia, eles começam a ver o produto de seus cérebros e músculos sendo modificado por ‘gente de fora’, claro, pela comercialização, pelos interesses econômicos, ou seja, eles mal estão se reconhecendo naquilo que criaram”. “Então, a crítica vai para o que chamo de ‘samba descaracterizado’”, considera o pesquisador.

Identidade negra

Os projetos de Candeia foram tomando corpo em meados dos anos 1970. “E foi justamente aí que busquei refletir sobre os fatos ocorridos em relação àquele movimento de preservação artístico-cultural em torno das escolas de samba”, diz o pesquisador. Segundo ele, aquele período apontou, ao mesmo tempo, para uma contestação sobre interpretações modernistas e nacionalistas do gênero (samba) em detrimento de suas raízes negras e populares.

Em certa altura de seu trabalho, Igor Ferraz chega a fazer um questionamento: “Mas afinal, quem é o Candeia que reivindica a defesa de uma identidade negra?”. De acordo com o pesquisador, o sambista traz consigo a autoridade de quem, ainda jovem, aos 17 anos, foi um dos autores de um samba-enredo histórico da Portela em 1953, quando a escola conquistou o título de Supercampeã do carnaval carioca com o enredo “Seis Datas Magnas”. O samba campeão foi composto por Candeia e Altair Prego. “Desta forma, não há como se questionar alguém que, com tão pouca, idade vence um carnaval participando de uma das alas mais respeitadas de uma escola. Não é um fato corriqueiro”, justifica o pesquisador.

Candeia em roda de samba. Cena do documentário "Partido Alto" - Foto: Reprodução/Youtube/
CTAv Centro Técnico Audiovisual

Candeia em roda de samba. Cena do documentário "Partido Alto" - Foto: Reprodução/Youtube/CTAv Centro Técnico Audiovisual

Já nos anos 1970, como destaca Igor Ferraz, jornais e revistas entravam em discussões sobre o apagamento do sambista. “Ao mesmo tempo, é um momento em que houve mais incentivos oficiais por órgãos ligados ao estado no sentido de fomentar o desfile. É quando se intensifica o interesse turístico pelo carnaval das escolas de samba”, pontua o pesquisador, destacando que chega então o tempo de se começar a ver as “celebridades em cima de carros alegóricos”.

José Domingues Sanches ao lado de Candeia - Foto: Domínio Público/Arquivo Nacional

Notícia do Jornal do Brasil sobre desfile de 1953 no qual Portela se consagra como grande campeã com o samba-enredo, do qual Candeia fez parte do processo de produção - Imagem: Reprodução/Jornal do Brasil/Domínio Público

Samba-enredo da Portela de 1953 - Áudio: Reprodução/Spotify

De acordo com o pesquisador, Candeia aborda a questão do racismo, não somente pela sua própria postura, mas também por toda a sua obra.

“Ele defende o resgate não só da sonoridade, mas até das raízes africanas do samba. Defende uma cultura afro-brasileira que é de extrema importância para o samba que, sem a qual você não vai ter samba de modo algum”, destaca o músico e pesquisador Igor Ferraz

O Quilombo

Em 8 de dezembro de 1975, os compositores Candeia, Neizinho, Wilson Moreira e Mestre Darcy do Jongo fundaram, na cidade do Rio de Janeiro, o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba (G.R.A.N.E.S.) Quilombo. “Foi um ato político!”, avalia Igor Ferraz. A agremiação, que reuniu importantes sambistas, como destaca o pesquisador, era uma escola de samba e da arte negra. Um quilombo de resistência. Atualmente, a escola é presidida por Selma Candeia, filha de Candeia. “A Quilombo nasce em forma de protesto contra aquilo que alguns sambistas entendiam ser ‘os descaminhos do samba’, simbolizados pelo grande inchaço das escolas e dos desfiles”, como cita o pesquisador em seu trabalho.

Surgiram então, como conta Igor Ferraz, a influência externa de “pessoas estranhas” e interesses comerciais desmedidos. “Pelo ponto de vista de Candeia, todas estas questões estavam, não só afastando os sambistas mais antigos de sua agremiação, como trazendo ‘inovações’ mal concebidas”, descreve o pesquisador. Para Candeia, o resultado implicava na diminuição das práticas tradicionais do partido-alto e do samba de terreiro. “Ele considerava então que o samba estava sendo modificado por gente de fora”, explica Igor Ferraz.

Candeia no G.R.A.N.E.S. Quilombo - Foto: Reprodução/Instagram/Granes Quilombo

Selma Candeia no G.R.A.N.E.S. Quilombo após pintura do mural em homenagem a Candeia em 2023 - Foto: Reprodução/Instagram/Granes Quilombo

Ainda há esperança

Para Igor Ferraz, nem tudo está perdido, já que ele considera que Candeia e sua obra deixaram uma raiz. “Quando vemos um Zeca Pagodinho, um Moacyr Luz reunindo sambistas em grandes mesas podemos observar nisso uma herança de Candeia”, reflete o pesquisador. “Se observarmos o jeito de se fazer samba nos bairros e botequins, nas vielas, está muito mais ligado àquela maneira de se fazer samba do Partido Em 5.”

“Ainda são tocados sambas de Candeia e Casquinha, e de outras Velhas Guardas. E esse aspecto coletivo do Candeia eu acredito que seja, sonoramente, um dos legados mais importantes do compositor”, destaca Igor.O pesquisador, atualmente, atua na Fábrica de Cultura, no bairro de Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, ministrando aulas de violão à comunidade. O estudo teve início em 2019 e foi concluído em 2023.

USP Especiais - USP
USP Especiais – USP
USP Especiais #49: O samba sem poluição de Candeia e o Partido em 5
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Mais informações: igordebruyn@gmail.com

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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