Estereótipos de gênero podem influenciar decisões judiciais?

Protocolo criado pelo Conselho Nacional de Justiça orienta juízes em decisões menos machistas e desiguais, aponta pesquisa da USP; treinamento de magistrados não é obrigatório

 Publicado: 28/08/2024

Texto: Maria Trombini*

Arte: Beatriz Haddad**

Seminário Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, realizado no Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, em 2023 – Foto: Ana Araújo-Agência CNJ/via Flickr – CC BY 2.0

Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), 84,5% dos brasileiros têm algum tipo de preconceito contra mulheres. Na esfera política, por exemplo, 39,91% das pessoas entrevistadas pela pesquisa acreditam que mulheres não desempenham funções tão bem quanto os homens, e que possuem menos direitos políticos do que eles.

Baseados nessa realidade, diversos mecanismos institucionais são criados a fim de mitigar e combater as disparidades de gênero. Em 2021, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. O documento funciona como “um guia para que os julgamentos que ocorrem nos diversos âmbitos da Justiça possam ser aqueles que realizem o direito à igualdade e à não discriminação de todas as pessoas”.

A resolução nº 492/2023 do CNJ tornou obrigatória a submissão das ações processuais às diretrizes estabelecidas pelo protocolo. O problema é que as resoluções do CNJ não são obrigatórias. “A resolução que torna a aplicação [do protocolo] obrigatória traz muitas discussões, porque o CNJ não poderia mandar os juízes fazerem isso”, explica Jéssica Frata, mestre em Direito e Desenvolvimento pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP. 

Em seu mestrado, a pesquisadora analisou a aplicação do documento nas decisões judiciais disponibilizadas pelo CNJ até janeiro de 2023. Ela também abordou as iniciativas de reescrita de decisões judiciais sob perspectivas feministas, destacando a importância de considerar olhares históricos, sociológicos e interseccionais no âmbito jurídico.

A Rádio USP Ribeirão produziu a série Mulheres e Justiça, que integra o projeto Reescrevendo Decisões Judiciais em Perspectivas Femininas — uma rede colaborativa de acadêmicas e juristas brasileiras de todas as regiões do País que se dedica a reescrever decisões judiciais a partir de um olhar feminista.

Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero: o que é e como funciona?

A ideia inicial de Jéssica para a dissertação de mestrado era explorar as influências de estereótipos com base em gênero nas decisões judiciais. Orientada pelo professor Sergio Nojiri, ela acabou encontrando o recém-publicado protocolo e decidiu alterar o escopo de sua produção. 

“Como a minha ideia era entender como os juízes julgam casos em que têm alguma influência do gênero de uma das partes, chamou a minha atenção esse protocolo, que é justamente um guia para eles julgarem considerando a questão de gênero, para que certos pré-conceitos não influenciem o julgamento”, conta.

A primeira parte do documento apresenta conceitos básicos, como sexo, identidade de gênero e sexualidade, e contextualiza questões centrais sobre desigualdade de gênero e suas influências no Direito. 

A segunda parte apresenta um “passo a passo”, que instrui os magistrados durante toda a atividade processual. “O protocolo não é para ser aplicado só na hora da decisão. O juiz tem que ter isso em mente durante toda a instrução do processo, desde muito antes da decisão final. Por exemplo, na audiência ou ouvindo testemunhas, tem que ter o respeito com as partes”, lembra Jéssica. 

É sugerido aos magistrados que levem em consideração temas como clareza dos termos jurídicos às partes, demandas da maternidade (por exemplo, pausas em audiências longas para atender a gestantes lactantes), medidas protetivas imediatas ou exposição excessiva da vítima. 

Por fim, são abordadas questões específicas dos diferentes ramos da Justiça estadual, federal, eleitoral, militar e do trabalho.

Exemplos de questões apresentadas para a etapa de valoração de provas e identificação dos fatos – trecho do Protocolo

Aplicação

Jéssica realizou uma análise das sentenças cujas fundamentações mencionavam o uso do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero em suas ementas — uma espécie de versão resumida das decisões judiciais —, fazendo um comparativo entre o que o protocolo diz e o que as decisões mencionam. 

A pesquisadora dividiu as principais orientações do protocolo em quatro categorias: igualdade, vulneráveis, violência e estereótipo. “Com base nisso, fui pesquisar nas ementas se elas apareciam, em que contexto e se estavam aplicadas conforme o protocolo”, diz. “Não adianta o magistrado falar que aplicou o protocolo, se a decisão dele não indica para isso”, complementa. Para a análise qualitativa, ela estabeleceu um peso, variando entre zero e um, atribuído de acordo com a conformidade da fundamentação com as orientações do documento. 

Imagem: Mulher com cabelos longos e lisos sorrindo
Jéssica Frata - Foto: arquivo pessoal

Como eu sou advogada, a fundamentação das decisões é uma coisa do meu dia a dia. Eu já vi juízes com certo preconceito com as partes. O Nojiri, meu orientador, é juiz federal e me falou que ouviu de juízas frases muito machistas. É algo bem complicado. Então, a minha ideia foi entender como o protocolo poderia contribuir para decisões mais… eu não vou dizer ‘justas’, porque ainda há a discussão também do que é a Justiça, mas decisões com menos viés e estereótipos”, afirma Jéssica.

A conclusão da pesquisa foi que a maioria das decisões está em conformidade com o documento. “Se as orientações dele forem incorporadas nas diferentes técnicas de julgamento que existem e nos treinamentos que os juízes recebem para elaborar uma decisão, dá para ter esperança de que o cenário vai melhorar bastante. Não sei se vai resolver, porque, para isso, teria que haver um trabalho desde a base, voltar lá no jardim de infância para ver como estamos formando as pessoas”, adiciona. 

Apesar do resultado positivo, Jéssica ressalta: “Não foram todas. Houve decisões em que eu vi que não estavam atingindo a finalidade e o juiz só mencionou por mencionar”. Para ela, é preciso melhorar a forma de seleção e o treinamento dos juízes. “Quando o protocolo saiu, várias entidades começaram a produzir cursos sobre o tema. O detalhe é que os juízes não são obrigados a fazer esses cursos. Eles têm bonificação por curso de capacitação, mas não há obrigatoriedade. Com exceção de juízes da Vara de Violência Doméstica, o estudo acaba ficando a cargo do magistrado.”

As instituições

Jéssica relembra a abordagem sobre estudos de gênero durante a graduação. “Eu me formei em 2015. Na minha época, a gente via isso nas aulas de Direitos Humanos e de Ética, sempre teve. A minha percepção é que os professores têm incluído mais esse assunto no cronograma, porque a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] também tem se modernizado. Nas provas de magistratura, há uma parte toda de gênero. Isso está no edital, então é preciso estudar sobre”. 

Jéssica explica que os teóricos do Direito têm visões distintas sobre a atuação das magistraturas: “Uma parte da doutrina, extremamente positivista, entende que a racionalidade do juiz é que deve imperar. O que está na lei é o que está na lei, sem muita margem para o juiz interpretar. E tem a outra corrente que propõe o realismo jurídico, ao invés da racionalidade jurídica. Eles levam em conta toda essa subjetividade, de vieses e crenças, e as interpretações, dependendo do caso. Eu, antes de estudar, ia mais para o lado do racionalismo. Pensava: ‘o juiz tem que aplicar a lei e acabou’. Mas não é bem assim”. 

“Cada caso é um caso e a lei não consegue prever todos eles. Nenhum artigo vai encaixar perfeitamente nas situações, então o juiz precisa compatibilizar e pesar as nuances”.

A pesquisadora aponta que a corrente realista propõe o reconhecimento das subjetividades dos magistrados como seres sociais justamente para que elas não interfiram no processo jurídico. “É preciso julgar conforme a lei. Então, primeiro, os juízes precisam reconhecer que essas subjetividades podem sim impactar [o julgamento]. Assim, é necessário um método para colocar isso de lado e julgar analisando o caso. E o protocolo tem essa finalidade: ajudar o juiz a limpar essa lente, reconhecendo que o caso tem suas peculiaridades, e a não julgar com base num preconceito ou num estereótipo”. 

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Ela complementa que, há décadas, o Brasil registra movimentos em prol da igualdade de gênero e de outros recortes sociodemográficos. “Eu fiz um apanhado histórico para explicar como a gente foi parar nesse protocolo, e descobri que esse é um movimento antigo. Pelo que vi, está havendo uma mudança estrutural e institucional do Judiciário.”

Jéssica resgata o momento de condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) nos casos de Maria da Penha e Márcia Barbosa. “Em 2006, a Lei Maria da Penha passou a instituir várias diretrizes para amparar as mulheres, como atuação de delegada mulher no caso e tratamento multidisciplinar no atendimento às vítimas. Com a lei, outras resoluções começaram a borbulhar, uma vez que o Brasil passou a aderir a diversas convenções e tratados internacionais contra a violência à mulher.”

No relatório da condenação pelo caso de Márcia Barbosa, o Brasil também recebeu a recomendação para estabelecer protocolos com diretrizes para melhor investigação nos processos. “O caso da Márcia foi pior na questão da investigação porque o assassino era um deputado. Então, várias coisas foram ocultadas durante a coleta de provas”, conta Jéssica. 

A pesquisadora acredita que resoluções como o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero teriam sido elaboradas mesmo sem as condenações na CIDH, porque já existia uma movimentação do Conselho Nacional de Justiça. “É um movimento institucional: vem de dentro e não só por influência externa. Veio do CNJ e depois pelo compromisso do Brasil ao ODS 5 — objetivos de desenvolvimento da ONU para a igualdade de gênero”. 

Em Janeiro deste ano, o CNJ lançou um banco no qual é possível consultar as decisões que mencionam o protocolo. O site permite filtrar os processos por ramo da justiça ou assunto principal, conferir a quantidade de cada categoria e consultar as ementas ou teor inteiro das decisões. “Quando eu fechei a dissertação, em janeiro, tinham 26 decisões cadastradas. Agora, esse número já é bem maior”, diz a advogada. Na data de publicação desta matéria, o site registrava 2095 sentenças cadastradas. 

A advogada acrescenta que existem organizações dos próprios magistrados sobre a questão: “Há grupos de juízas que se reúnem para estudar assuntos sobre gênero. São associações em que elas mesmas se organizam para discutir esses temas. Elas, por serem mulheres, também são de alguma forma atingidas por esses preconceitos e por essa misoginia, que podemos dizer que é estrutural. Tanto é que várias juízas fizeram parte da elaboração do protocolo. Na primeira parte, o foco é que isso seja incorporado no dia a dia de todos os juízes”. 

Ela revela o desejo de continuar pesquisando o tema e conta que realizou a inscrição para tornar-se aluna especial na Faculdade de Direito (FD) da USP: “Eu ainda quero entrevistar os juízes e analisar mais profundamente as aplicações e fundamentações. Pretendo continuar estudando esse assunto com um viés um pouco mais processual”.

*Estagiária sob supervisão de Tabita Said

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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