Fotomontagem com imagens de Public Domain Vectors e Wikimedia Commons

Em Paraisópolis, rugby ressignifica o espaço urbano e faz do lazer uma medida educativa

Em meio à hiperverticalização da segunda maior periferia de São Paulo, esporte é visto entre os moradores como ferramenta de pertencimento e denúncia

 06/12/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 12/12/2022 as 15:07

Texto: Danilo Queiroz

Arte: Rebeca Fonseca

Numa das maiores periferias do Brasil, a comunidade de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, um projeto vem estimulando a população local a praticar o rugby. Trata-se do Instituto Rugby Para Todos (IRPT).  Com o objetivo de compreender como o esporte muda as relações sociais naquela comunidade, um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) realizado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP buscou investigar a atuação do esporte na ressignificação de Paraisópolis.  O trabalho intitulado Lazer, espaço urbano e educação em Paraisópolis: o Instituto Rugby Para Todos e os jogadores da comunidade tem como autor o estudante Gideão Idelfonso, bacharel em Lazer e Turismo na EACH e ex-morador. Para realizar este estudo, ele utilizou a experiência dos 25 anos que viveu naquela região.

Orientado pelo professor Edmur Stoppa, o trabalho foi inserido numa das duas únicas revistas de estudos de lazer do Brasil, a Revista do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O material pode ser acessado virtualmente.

O orientador pontua o quanto o trabalho carrega um caráter antropológico, quebrando a lógica de enxergar as periferias por uma ótica preconceituosa. De acordo com Edmur Stoppa, “o senso comum coloca uma série de problemas em uma região como essa e pouco ressalta os valores que uma comunidade como Paraisópolis pode proporcionar.”

Gideão Idelfonso procurou trazer em seu trabalho um novo olhar sobre a comunidade e reverter a lógica de que dentro das periferias não há nem turismo, tampouco lazer. Traçando uma perspectiva histórica, ele utiliza a arquitetura do município para traçar um histórico da escassez de um direito básico à vida, de acordo com a Constituição: o lazer.

Edmur Stoppa – Foto: Reprodução/Facebook

Diante de uma arquitetura altamente adensada, o estudante questiona que o lazer deveria ser um direito devidamente efetivo em Paraisópolis, no entanto, por muitas vezes é reduzido como um espaço que abriga apenas mão de obra. “Paraisópolis não é somente uma cidade-dormitório. As pessoas desejam qualidade de vida e o espaço precisa estar estruturado para atender isso. Ela também diz muito sobre mim”, ressalta o estudante.

Paraisópolis está localizada na zona sul de São Paulo, e a falta de equipamentos de lazer contrasta com o bairro vizinho, o Morumbi. Contudo, o estudante acredita que, embora faltem instrumentalização e a manutenção dos espaços públicos que promovam atividades físicas entre os moradores, o lazer é visto de outra forma. “A  presença dos cultos evangélicos, os tradicionais jogos de futebol e os bailes funks nos finais de semana são o que há de lazer na comunidade. Em virtude da falta de espaços públicos que possam garantir isso plenamente, a arquitetura dos espaços vai sendo ressignificada”, aponta Idelfonso.

Procurando se utilizar das suas experiências enquanto morava na comunidade, havia algo de inusitado que não passa pela cabeça da maioria das pessoas quando pensam em atividades esportivas ali. Em um dos poucos campos de várzea de Paraisópolis, os moradores não só jogam o tradicional futebol entre amigos, as famosas “peladas”, mas também praticam um jogo ainda pouco difundido em nosso País, contudo, popular entre os becos e vielas  da região: o rugby.

Pesquisa periférica

O estudante trouxe uma fonte estatística não oficial para utilizar num trabalho acadêmico, a Associação dos Moradores e Comércio em Paraisópolis. O material disponível de forma digital permitiu compreender dados demográficos, como a quantidade de habitantes, que corresponde, em média, de 80.000 a 100.000. A imprecisão se dá pela forma como o bairro foi se estruturando. Sem planejamento urbano, Paraisópolis apresenta uma alta densidade demográfica composta, sobretudo, de migrantes nordestinos atraídos pela construção civil, na década de 1950.  

“Precisamos aliar conhecimentos institucionais do trabalho que a comunidade popular produz. Se o trabalho fala de onde vim e de quem reside naqueles espaços, por que devo somente aceitar a definição que o IBGE traz sobre as periferias, como o órgão diz, conglomerado subnormal? Conceito um tanto elitista?”, questiona  o estudante sobre a reprodução preconceituosa de órgãos oficiais do Estado.

Gideão Idelfonso - Foto: Arquivo particular

Gideão Idelfonso – Foto: Arquivo pessoal

Procurando estabelecer uma leitura acessível com uma linguagem de fácil compreensão, o trabalho desenvolvido foi pensado para ser lido entre os moradores da comunidade. Superando resumir a arquitetura do local como reprodução somente de um modelo de subsistência, os serviços que circulam a economia da cidade, Idelfonso enxergava essa produção intelectual como um pedido de denúncia, mas sobretudo como um espaço, no qual as pessoas que residem ali pudessem expressar o que sentem sobre o objeto de estudo delimitado: O Instituto Rugby Para Todos (IRPT). 

Fundado em 2004 por dois amigos moradores do Morumbi, Maurício Draghi e Fabricio Kobashi, o IRPT visa, de forma voluntária, a ensinar a modalidade entre os moradores de Paraisópolis e comunidades do Rio de Janeiro, sendo crianças de 7 a 18 anos. O projeto atende anualmente 300 atletas.

Rugby na periferia, sério?

Sim!. Para o estudante essa é uma pergunta comum vinda de pessoas que não residem em Paraisópolis. No entanto, essa é uma realidade presente e conhecida entre os moradores. O esporte, até então inusitado para quem não é de lá, apresenta uma perspectiva antropológica ao trabalho em questão. Ou seja, de acordo com Idelfonso, para compreender como o rugby muda as relações sociais na comunidade é preciso se desfazer do olhar externo, que enxerga esse fenômeno como exótico, e partir para um olhar horizontalizado, sem preconceitos.

Essa é a mesma lógica que perpassa o turismo de base comunitária que ocorre nas favelas quando a atividade é dirigida por alguém que não pertence àquele espaço. Nesse caso, o que deveria potencializar e atrair os olhares do poder público para investir no que esses espaços produzem, como cultura, educação e esporte, à medida que introduz um olhar externo, reforça ainda mais estereótipos.

“O turismo na favela não é para olhar as pessoas. Ele existe para enaltecer os espaços sociais e as culturas presentes, como participar de uma roda de samba e enxergar a dinâmica do dia a dia entre os becos. Porém, o problema acontece na forma como esses passeios são executados, tornando-se muitas vezes um espetáculo da pobreza para os visitantes. Gringos e brasileiros em jipes como se estivessem num safári. Um absurdo! Somente um morador conhece o território que pisa.”

O lazer pode trazer novas perspectivas sobre Paraisópolis. Por tantos anos da sua vida Idelfonso usufruiu daquele bairro e não tinha percebido o mundo que estava para fora dali. Isso impactou na naturalização da precária instrumentalização do espaço que ocupa quase 800 metros quadrados, o equivalente a aproximadamente 74 campos de futebol. No entanto, Paraisópolis possui apenas um campo com notáveis dimensões: o Palmirinha. E não é exclusivo para o esporte visto como símbolo brasileiro, mas também para os treinos de rugby, em sua origem praticado pela elite inglesa.

Um muro, duas realidades

Em 2021 Paraisópolis completou 100 anos. E a origem da falta de equipamentos de lazer não é de hoje. Entre os moradores, o que deveria ser um direito não passa de falsas promessas políticas. Idelfonso justifica essa situação apresentando que foi preciso que se passassem 13 anos para que o Parque Lourival Clemente da Silva, uma das áreas de lazer, tivesse as suas obras concluídas no ano passado, mesmo com R$ 500 mil investidos a mais do que o previsto. 

Diante da demora do poder público para garantir aquilo que deveria ser cumprido, o estudante ressalta a participação da sociedade civil para que o lazer possa ser garantido e utilizado não só como ferramenta de diversão, no aumento da qualidade de vida, mas também como uma medida educativa.

Valores como pertencimento, cooperativismo e competição são desenvolvidos no rugby da comunidade. “Eu vejo que é um esporte que possibilita o encontro, companheirismo, laços de amizade e sentimento de pertencimento. Eu olho para o meu jogador aqui do lado e ele parece comigo”, pontua Idelfonso ao lembrar da época que participou do projeto, na infância. Um dos destaques do IRPT vem sendo o aumento da presença de moradores, que tornaram-se atletas e, hoje, estão participando de competições, como as Olimpíadas.

No IRPT moradores praticantes do rugby tornaram-se atletas que participam de competições

Bianca Silva e Gabriel Oliveira são dois exemplos. Essas pessoas representaram o Brasil em Tóquio nas Olimpíadas em 2021 e servem como fonte de inspiração na comunidade para os atletas recém-chegados. “Você olha aquela menina que joga e algo surge em você querendo ser que nem ela. De representar a comunidade! ”, afirma Idelfonso. “Quando eu olho Paraisópolis, quero ter a sensibilidade de mostrar que ali não é um lugar reduzido à criminalidade como a TV costuma fazer”, complementa o bacharel, ao referir que o trabalho produzido também serve como denúncia. Mas o objetivo principal foi trazer uma nova perspectiva para a comunidade. 

A favela venceu?

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Popularizada nas redes sociais, essa é uma máxima que viralizou. No entanto, é preciso reconhecer que é distinto a favela do favelado vencer. Gideão Idelfonso em seu trabalho entrevistou algumas pessoas não identificadas que participam do projeto de rugby na comunidade. Dentre alguns relatos, sobressaem falas do quanto o esporte foi capaz de mudar suas vidas. Presos muitas vezes em suas residências devido à preocupação dos responsáveis em mantê-los longe do espaço público, no qual há um constante conflito entre o Estado e o crime organizado, o lazer acaba se tornando algo particular, como assistir TV, por exemplo, ao passo que suprime experiências compartilhadas, no caso do esporte.

" 'A favela venceu’ é utopia, eu nem sei se isso vai acontecer porque a agenda dos que mandam não tem como prioridade de suas agendas políticas as favelas”
Gideão Idelfonso

Pequenas conquistas, no entanto, devem ser comemoradas. O IRPT é composto não só de educadores físicos de rugby, mas de psicólogos, nutricionistas e fisioterapeutas. Essa organização transdisciplinar, de acordo com Idelfonso, traz à consciência daqueles que participam do projeto que não, a favela não venceu. “Falta educação de qualidade, saneamento adequado, espaços de lazer. Como posso dizer, então, que a favela venceu? Falta muito o que se fazer. E o Estado é responsável por isso”, pontua o estudante que, ao entrevistar participantes do projeto, concluiu que os serviços prestados pela organização despertaram um sentimento de mobilização, sobretudo, entre as famílias dos atletas. 

O conformismo, então, é quebrado. A educação que o rugby proporciona vai além de desenvolver valores, mas é reforçar que não deve ser aceitável reduzir essa população à mão de obra e que o lazer é peça fundamental para ensinar isso. O TCC conclui a importância de reivindicar a cidade como elemento primordial na construção de identidades. E, segundo Idelfonso, esse sentimento é construído quando “o coletivismo toma conta das nossas vidas, assim como numa partida de rugby, um jogador sozinho não consegue vencer o jogo”.

Mais informações: gideao.idelfonso@alumni.usp.br e stoppa@usp.br


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