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Educadores fortalecem narrativas africanas em aulas com hip hop, capoeira, grafite e dança
Projeto desenvolvido na Faculdade de Educação (FE) da USP aproxima atividades escolares das vivências de estudantes periféricos, trazendo elementos de suas experiências cotidianas e criando espaços de acolhimento
No projeto, educadores utilizam atividades transdisciplinares que envolvem capoeira, danças circulares, hip hop e rap, entre outras expressões - Fotomontagem: Jornal da USP - Imagens: Freepik e Pixabay
Professores da rede pública de ensino estão ampliando debates étnico-raciais em salas de aula a partir de conhecimentos da cultura africana. Os educadores utilizam atividades transdisciplinares, envolvendo capoeira, danças circulares, hip hop, rap e outras expressões artísticas como metodologia, buscando aproximar a rotina escolar das vivências de estudantes.
Desenvolvido na Faculdade de Educação (FE) da USP, o projeto Docências compartilhadas, formação continuada e a Lei 10.639/03: o papel das culturas urbanas em escolas públicas de diferentes regiões periféricas acontece por meio do grupo de estudos e pesquisas da FE Educação e Afrosperspectivas, iniciado em 2022. O projeto já vem sendo aplicado em diversas instituições de ensino do País, como na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Em São Paulo, o projeto é realizado com as escolas parceiras: Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Célia Regina L. Consolin, localizada no Parque Novo Mundo, Centro Educacional Unificado (CEU) Emef Presidente Campos Salles, em Heliópolis, e Escola Estadual (EE) Mario Manoel Aquino, em Ferraz de Vasconcelos.
Em conjunto com professores de todas as áreas, cada educador procura efetivar as leis 10.639 e 11.645 – que determinam o ensino de história e cultura dos povos africanos, afro-brasileiros e indígenas na educação básica –, a partir de metodologias pautadas em culturas urbanas.
“Nós pretendemos trazer as culturas afro-brasileiras para dentro da escola, por meio da capoeira, do hip hop, do candomblé e outras tantas culturas”, afirma Mônica Guimarães Teixeira do Amaral, professora da USP e coordenadora do projeto na FE. “Com isso, recupera-se a importância da cultura popular brasileira que foi excluída em razão da orientação eurocêntrica do currículo”, complementa ela.
Conhecimento entre rimas e beats
Para Kleber Siqueira, participante do projeto e pesquisador do ensino de história e educação étnico-racial da FE, “uma das principais maneiras de combater o preconceito é o conhecimento”. Juntamente com Fábio da Silva Cândido, professor de história na Emef Célia Regina L. Consolin, eles desenvolvem a Metodologia Hip Hop, com alunos do 6º ao 9º ano do ensino fundamental.
Siqueira foi inspirado pelos estudos do professor Marc Lamont Hill, docente americano que discute o potencial do estilo musical para atrair e reter alunos para atividades em sala de aula. Tanto Hill como Siqueira utilizam letras de músicas no estilo hip hop, com recortes temáticos específicos para gerar discussões nas aulas.
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“Nós trabalhamos com raps socialmente engajados e textos musicais em que a narrativa está em primeira pessoa, e o autor passa por um contexto social próximo ao vivido pelos estudantes”, explica Kleber Siqueira. “A similaridade dos assuntos históricos com as abordagens musicais, além da aproximação com os alunos, possibilita trabalhar os temas do currículo escolar”, complementa.
Ao Jornal da USP, Siqueira conta sobre um episódio de preconceito racial ocorrido em sua aula, em 2022, e a discussão gerada a partir do rap. “O aluno responsável pela ofensa apenas reproduziu o racismo que ele enxerga na sociedade. E como trabalhar um assunto delicado como este?”, questiona ele.
O pesquisador utilizou o caso ocorrido com MC Soffia, vivenciado no mesmo período de sua aula. Durante uma premiação da MTV, a cantora acusou a organização de racista por não tê-la convidado oficialmente mesmo tendo sido indicada à categoria Black Star Rising, que reconhece novos artistas pretos. O professor também utilizou as músicas África e Menina Pretinha, da MC, para criar uma reflexão em aula. “Nós discutimos como ela enfrenta a questão do racismo, sendo tão jovem, com músicas fortes de denúncia”, conta Siqueira. “Conversamos sobre a importância de conhecer sua ancestralidade, a história da África e a luta contra o racismo”, complementa.
Cristiane Correia Dias, pesquisadora da FE, ativista da cultura hip hop e dançarina de breaking, realiza o projeto na Emef Levy de Azevedo Sodré, em Campo Limpo, junto com os professores da escola Adilson Fideles e Adriana Ribeiro da Silva, de Geografia, e Lucia da Gama, de Educação Física. Com a iniciativa Hip Hop Lab na Levy, os professores elaboram atividades com elementos da cultura hip hop, como a dança breaking, com o auxílio do arte-educador e rapper Marcus Vinicius dos Santos.
“As nossas aulas de breaking e MC são construídas a partir dos conteúdos que os estudantes aprendem durante o bimestre, junto às suas próprias demandas. Por exemplo, quando falamos sobre os feminismos e conceituamos o feminismo negro interseccionado, o feminismo hip hop e o nosso feminismo de favela. Autoras como Patrícia Hill Collins e a artista Queen Latifah foram estudadas na classe”, conta Cristiane.
Já a professora de filosofia Marina Dias, participante do grupo de pesquisa na FE, afirma que “a docência compartilhada permite criar espaços em que podemos trabalhar problemas sociais que afetam subjetiva e objetivamente os estudantes”. Alunos dos sétimos anos do ensino fundamental da Emef Célia Regina L. Consolin também tiveram a oportunidade de criar suas próprias letras de rap, expondo sentimentos e denúncias por meio da música:
Rodas de capoeira e aprendizagem
Em sua participação no projeto de Docências Compartilhadas, o professor e mestre de capoeira Valdenor Silva dos Santos apresenta conhecimentos africanos através dessa expressão cultural. Ele investiga as contribuições da capoeira para a formação de gerações de jovens afrodescendentes em sua pesquisa de doutorado na USP. Nas aulas que leciona na Emef Irineu Marinho e no CEU Heliópolis, Valdenor utiliza a mesma didática para trabalhar os temas escolares com o auxílio da capoeira, junto de Ana Claudia Florindo Fernandes, também pesquisadora da FE.
“Nós partimos das cantigas tradicionais da capoeira porque elas estão ligadas à trajetória social do negro no Brasil, desde o período de escravatura no Brasil Colônia e Império, até República, Estado Novo etc. A capoeira se relaciona às questões históricas políticas e sociais do País”, afirma o mestre.
Entre os temas propostos na sala de aula, estão: a tentativa de embranquecimento da população pelo Estado, os castigos nos pelourinhos, a proibição de jovens e adultos negros frequentarem a escola em determinados períodos do Brasil e a criação de barreiras sociais que impedem sua qualidade de vida.
As aulas contam com a formação de rodas de capoeira com estudantes. “O curso é majoritariamente teórico, mas temos a prática para que os estudantes possam compreender a capoeira de maneira completa”, explica Valdenor. “Eles aprendem a tocar berimbau, atabaque, pandeiro e outros instrumentos”, complementa.
No áudio a seguir, Valdenor apresenta uma das músicas utilizadas em sala de aula:
Cosmovisão e filosofia africana
Para além das rimas e dos batuques, Marina apresenta a história e a cultura africana por meio de conhecimentos do povo yorubá, jogos africanos e dança afro. As atividades acontecem com alunos do 6º ao 9º ano do ensino fundamental, na Emef Célia Regina L. Consolin, juntamente com os professores e pesquisadores da escola Robson Guarnieri, de Geografia, e Denise Lima, de Artes, por meio da docência compartilhada.
Ao Jornal da USP, Marina conta sobre uma aula em que professores e alunos debateram questões do reconhecimento corporal. Ela explica que, na filosofia africana, a cabeça – o ori, em yorubá – representa a individualidade e a ancestralidade do orixá, além de estar diretamente ligada ao coração – okan, em yorubá.
“A cosmovisão africana apresenta uma concepção de que o nosso corpo e a nossa mente estão a serviço de construir um sujeito integral, responsável pelo nosso destino. Trata-se de uma visão de mundo envolvendo a ancestralidade africana”, explica Marina.
Na Emef Célia Regina L. Consolin, os educadores do projeto trouxeram artistas grafiteiros para expandir o conhecimento para fora da sala de aula. Os estudantes puderam grafitar os mapas da África e da América do Sul, além de representarem personalidades negras importantes na história, como a escritora Carolina Maria de Jesus e o advogado abolicionista Luís Gama.
Professores da rede pública de ensino estão ampliando debates étnico-raciais com conhecimentos da cultura africana - Foto: Arquivo pessoal de Fábio da Silva Cândido
De acordo com os professores do projeto, a diversificação das atividades escolares não compromete o currículo escolar. “Nós utilizamos o currículo como um caminho a ser seguido, mas explorando os conhecimentos, de forma a aprofundar as reflexões”, explica Robson. Para a coordenadora Mônica, o projeto se empenha, sobretudo, em mostrar a importância dessas reflexões e ampliar a iniciativa para outras escolas, a fim de efetivar o cumprimento das leis 10.639 e 11.645.
Acolhimento escolar
O desenvolvimento pessoal dos alunos pode ir além das disciplinas escolares. O projeto Docências Compartilhadas permite que os professores estejam mais disponíveis para auxiliar os estudantes em suas habilidades. “As aulas compartilhadas possibilitam que cada professor escute e auxilie grupos de alunos diferentes. Trata-se de um trabalho coletivo muito rico, com uma potencialidade enorme para o crescimento dos estudantes e nosso também”, conta Robson.
“A proximidade com a vivência particular dos alunos acaba gerando maior interesse e participação deles na sala de aula”, afirma Denise. “Nós mostramos que a academia não está distante da comunidade periférica”, complementa a professora.
Na Emef Célia Regina L. Consolin, o projeto promoveu ainda a Caminhada da Paz, que contou com uma série de iniciativas semanais para discutir formas de violência na escola. Uma delas foi a reunião dos estudantes em rodas e danças circulares, para trabalhar a noção de integralidade. “A dança circular existe nas comunidades indígenas e africanas como formas de comunicação horizontal e de integração na comunidade”, explica a professora Mônica.
Mais informações: monicagta@usp.br
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