Diversidade e inclusão migram para o centro do debate dos historiadores

Professores, pesquisadores e estudantes de todo o Brasil se reuniram em São Luís para o 32º Simpósio Nacional de História

 26/07/2023 - Publicado há 11 meses     Atualizado: 28/07/2023 as 11:33

Texto: Silvana Salles
Arte: Carolina Borin (estagiária)*

Comemorações do Bumba Meu Boi do Boi de Juçatuba no Maranhão - Foto: Márcio Vasconcelos/Acervo IPHAN

Em meio às férias escolares e ainda durante os festejos de São João, historiadores vindos de todos os estados aterrissaram em São Luís do Maranhão neste mês de julho para o principal evento nacional dedicado à história profissional: o Simpósio Nacional de História, que neste ano chegou à sua 32ª edição. Diferentemente de um passado recente, no qual era esperado dos historiadores profissionais um protocolar distanciamento em relação a seus objetos de estudo, neste ano a tônica do evento foi discutir como o trabalho de historiadores profissionais pode ter impacto direto sobre a realidade social. Assim, questões relacionadas à diversidade e à inclusão estiveram no centro das discussões.

Realizado a cada dois anos e sediado sempre por uma universidade diferente, o Simpósio Nacional de História é promovido pela Associação Nacional de História (Anpuh). A edição de 2023 foi sediada em parceria pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e a Universidade Federal do Maranhão (UFMA). O encontro presencial aconteceu entre 16 e 21 de julho. A reportagem do Jornal da USP esteve em São Luís acompanhando o evento, cujo tema foi Democracia e direitos humanos: desafios para uma história profissional.

O tema escolhido foi uma espécie de resposta aos ataques do governo anterior à ciência, à universidade e aos direitos humanos, bem como um convite para pensar sobre como os historiadores podem somar na construção democrática do Brasil. Nesse sentido, os conferencistas convidados apresentaram reflexões que articularam problemas da atualidade com a produção do conhecimento acadêmico, propondo caminhos para que a historiografia contribua para gerar efeitos diretos sobre a realidade social.

Instituto Estadual de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão, onde foi sediada parte das mesas do Simpósio - Foto: Reprodução/Seduc-MA

Na conferência de abertura, o professor Valdei Araújo, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), em Minas Gerais, pontuou que nos últimos anos a diversidade – de gênero, de classe, étnico-racial, regional e religiosa, entre outras – saiu da condição de tema “acessório” para ocupar o centro dos projetos de pesquisa em história. Esse deslocamento temático acompanha o processo de transformação pelo qual as universidades vêm passando a partir da implementação das ações afirmativas.

Presidente da Anpuh durante o último biênio, Araújo citou a CPI da Covid no Congresso Nacional como “uma aula de como se produz história do tempo presente” e fez uma autocrítica à demora da comunidade profissional de história em responder ao uso desonesto de seus resultados de pesquisa por ativistas de direita que se apoiam no discurso do “politicamente incorreto”.

“Ficou mais do que evidente que o nosso trabalho não termina na pesquisa e na publicação”, afirmou o professor da UFOP, defendendo a necessidade de disputar a forma como os leitores recebem os trabalhos produzidos pelos historiadores. Ele também defendeu como tarefa dos profissionais de história a “construção de narrativas mais inclusivas, justas e informadas, para que as gerações próximas possam ter uma noção mais rica de seus legados”.

Valdei Araújo - Foto: Reprodução/Twitter

Conexões presente-passado

A questão da inclusão também marcou o compasso das duas conferências na programação que tiveram professores da USP como convidados. Na terça-feira, 18, o professor Marcelo Cândido, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP ministrou a conferência O que a fome na Idade Média pode nos dizer da fome contemporânea?, na qual apresentou alguns projetos que estão em desenvolvimento no eixo Políticas Públicas do novo INCT Combate à Fome, sediado na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.

Citando dados do último relatório da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), que revelou que 61,3 milhões de brasileiros enfrentaram algum grau de insegurança alimentar em 2022, Marcelo Cândido argumentou que as pesquisas dos historiadores podem contribuir para uma melhor contribuição teórica e global da fome.

Ele explicou que a ideia de uma separação rígida entre as sociedades antigas e as sociedades modernas vêm sendo questionada em muitas áreas do conhecimento. Contudo, nos estudos sobre a fome, essa separação ainda é comum, sendo as fomes do passado mais associadas a eventos climáticos e as fomes contemporâneas, a problemas de produção e distribuição de alimentos.

No INCT Combate à Fome, Cândido propõe outra abordagem, que faz uma análise de conjunto das fomes antigas e das fomes modernas, considerando também fatores políticos como causas imediatas e a possibilidade de a fome ter beneficiários que lucram com ela. “As sociedades antigas são excelentes laboratórios da desigualdade”, afirmou o docente da FFLCH, que palestrou ao lado de Fábio Faversani, professor de história antiga da UFOP. Faversani discutiu o tema da corrupção, partindo de um caso ocorrido na Roma Antiga: o conflito entre os senadores Cícero e Catilina.

Marcelo Cândido - Foto: Lattes

Obra "Ciclo da caça ao índio", de 1922 - Imagem: Reprodução/Museu Paulista da USP

Na quinta-feira, 20, Paulo Garcez, professor do Museu Paulista da USP, e Márcia Chuva, professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), apresentaram os projetos museológicos com os quais estão envolvidos. A partir dessas experiências, eles discutiram as possibilidades de democratização e decolonização dos museus brasileiros.

Em sua conferência, Paulo Garcez disse que a reforma do Museu do Ipiranga foi permeada por um processo de revisão do acervo do Museu Paulista que já dura décadas. Ele contou sobre o trabalho coletivo de reinterpretação do acervo e de reescrita dos textos explicativos, comentando algumas escolhas, como a manutenção do título Ciclo da caça ao índio a uma pintura de Henrique Bernardelli que data de 1922. Naquele caso, a equipe do museu chegou à conclusão de que o título não deveria ser modificado porque servia à tarefa de iluminar as violências históricas a que as populações indígenas são submetidas desde o período colonial e a mentalidade que sustenta essas violências.

Garcez também defendeu que os museus tenham acesso a linhas de fomento para comprar coleções, de forma a sair da dependência das doações, que via de regra são feitas por pessoas da elite. Durante a conferência, o professor ponderou que o Museu Paulista passou um século reunindo coleções com o intuito de contar a história das elites brasileiras, mas está há apenas 30 anos reunindo coleções dedicadas a contar outras histórias, protagonizadas por outros atores. A maioria dos museus brasileiros, que não estão ligados a universidades, nem sequer iniciaram esse processo.

“Nossos esforços por uma história profissional não chegaram aos museus. Temos um longo trabalho para que cheguem”, refletiu o professor do Museu Paulista, afirmando que os museus deveriam iluminar processos históricos e seguir uma ética de compromisso efetivo com a democracia.

Paulo Garcez - Foto: Reprodução/YouTube/Unibes Cultural

Paulo Garcez - Foto: Reprodução/YouTube/Unibes Cultural

Márcia Chuva - Foto: Divulgação/FioCruz

Márcia Chuva - Foto: Divulgação/FioCruz

Por sua vez, Márcia Chuva falou sobre a experiência da exposição Brasil decolonial: outras histórias, que ficou em cartaz no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, entre 2021 e 2022. O projeto, nascido de uma parceria do museu com a Unirio e o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal, levou ao circuito expositivo uma série de 17 intervenções que propuseram leituras decoloniais sobre temas e objetivos relativos à diáspora africana na história do Brasil. Ela contou o caso de Maria Cambinda, uma peça de madeira que ficou esquecida no acervo do museu. Antes tratada como mera ilustração alegórica da África, ela foi apresentada na exposição como uma representação dos protagonismos negros no Brasil.

“Nossa intervenção visa trazer para o presente objetos que ficaram perdidos no passado”, explicou Márcia Chuva. Embora as intervenções físicas não estejam mais em cartaz, a exposição virtual A história de Maria Cambinda ainda pode ser acessada na página do Museu Histórico Nacional na plataforma Google Arts & Culture.

Trocas de experiências de pesquisa

Além das conferências, a programação do encontro bianual da Anpuh contou com uma maratona de atividades – debates, minicursos, reuniões de trabalho, simpósios temáticos, feira de livros, oficinas culturais etc. – espalhadas pelo centro histórico de São Luís. Segundo Monica Piccolo, professora do Departamento de História e Geografia da UEMA e organizadora do evento, a ideia foi justamente promover uma grande ocupação do centro histórico da cidade, que é reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela Unesco.

Na abertura do evento, Monica destacou o fato de que, pela primeira vez, nos 62 anos da associação o Simpósio Nacional de História foi realizado na Amazônia Legal, o que conferiu maior participação de docentes e estudantes do Nordeste nesta edição do encontro.

Ruas do centro histórico de São Luís Maranhão - Foto: Wikimedia Commons/Alan Rodrigues

O protagonismo dos estudantes que viajaram a São Luís se deu principalmente nos simpósio temáticos. Ao longo da semana, pós-graduandos e pós-graduados de várias universidades brasileiras apresentaram seus trabalhos de pesquisa nesses espaços, alguns dos quais já se tornaram encontros periódicos de redes consolidadas de pesquisadores que compartilham interesses por temas afins.

A historiadora Beatriz Nowicki, mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da FFLCH, participou de um simpósio temático sobre história moderna. Ela apresentou aos colegas um trabalho derivado de sua pesquisa de mestrado, que investigou as práticas e discursos associados à escravização de indígenas no Brasil colonial.

Para a estudante de pós-graduação, eventos como o Simpósio Nacional de História criam espaços de trocas. “Na pesquisa passamos momentos de introspecção para a escrita e quando trocamos podemos reavaliar nossas hipóteses, rever a bibliografia. Mas esse ano foi especial, porque foi a primeira Anpuh nacional pós pandemia. Então, foi muito importante trocarmos presencialmente, rever colegas e até conhecer pessoas com quem reuníamos on-line”, disse Beatriz.


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