Conheça a Bibliaspa, instituição que acolhe imigrantes e refugiados em São Paulo

Iniciativa tem parceria de longa data com alunos e professores da USP, que atuam em projetos institucionais e de voluntariado

 Publicado: 07/06/2024     Atualizado: 11/06/2024 as 10:39
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Sala de aulas de português e geografia para pessoas em situação de refúgio em São Paulo – Foto: Maria Trombini

Na Rua Baronesa de Itu, centro histórico de São Paulo, funciona a Biblioteca e Centro de Pesquisa da América do Sul, Países Árabes e África, conhecida como Bibliaspa. Há 22 anos, a Bibliaspa ocupa o prédio onde funcionava o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), oferecido à instituição em comodato.

Aos sábados, a casa recebe dezenas de imigrantes e refugiados das mais diversas nacionalidades, que se deslocam semanalmente para assistir às aulas ministradas por voluntários, muitos dos quais são alunos e professores da USP. Atualmente, a Bibliaspa é presidida por Paulo Daniel Farah, professor de Língua e Literatura Árabe no Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. 

A instituição também desenvolve projetos de integração, de capacitação profissional e de assistência a vulnerabilidades sociais. 

Nanami Sato, formada em Letras pela USP, é coordenadora pedagógica e uma das diretoras da Bibliaspa. Segundo ela, a Bibliaspa é uma entidade sem fins lucrativos e, por isso, depende de verbas obtidas por meio de emendas parlamentares, editais do poder público, doações de instituições ou de organismos internacionais e outras parcerias.

Em 2018, a Bibliaspa foi uma das iniciativas contempladas pelo programa Aprender na Comunidade, promovido pela Pró-Reitoria de Graduação (PRG) da USP. Além de custear a bolsa-auxílio dos alunos, o programa fornecia uma quantia em dinheiro, utilizada para financiar os bilhetes de metrô doados aos imigrantes e refugiados para que pudessem chegar ao local.

Fachada da casa que sedia a Bibliaspa- Foto: Cristiane Thomé

“A Receita Federal faz muitas doações de produtos apreendidos pela fiscalização, que estão em uso na casa, são doadas aos alunos ou expostas no bazar para arrecadação de fundos. Muitas casas comerciais doam alimentos para as refeições oferecidas. A Prefeitura de São Paulo também fornece cestas básicas para distribuição”, conta a coordenadora.

No espaço atrás da casa, há uma cozinha industrial e diversas mesas e cadeiras espalhadas pelo pátio. O cenário representa a consolidação do projeto Cozinha Escola Solidária, fruto de uma parceria com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo e com o Movimento Estadual da População em Situação de Rua. 

Além de funcionar como sala de aula dos cursos técnicos oferecidos pelo Senac, é nessa cozinha que são preparadas as refeições diárias ofertadas aos alunos e à população em situação de rua da capital paulista. 

Em 2023, a Bibliaspa foi contemplada por uma emenda parlamentar proposta pela Bancada Feminista do PSOL na Câmara Municipal de São Paulo. O projeto Acompanhamento e Integração Intercultural para Famílias Afegãs e Imigrantes funciona de segunda a sexta-feira, das 9h30 às 16 horas, e atende mais de 100 pessoas. Tanto voluntários como professores e instrutores, remunerados pela verba da emenda, oferecem aulas diárias de português e outras atividades, como informática e confecção de artesanatos. 

A instituição também oferece assistência jurídica e psicológica gratuitamente. “Procuramos atuar nas questões referentes a trabalho e saúde, com oferta de ultrassonografia de mama e atendimento oftalmológico por entidades parceiras”, diz Nanami.

Geografia e língua portuguesa

Em uma das salas do segundo andar, diversos mapas estão colados nas paredes. Eles mostram os continentes, o território brasileiro e o Estado de São Paulo. As legendas estão em português, inglês e árabe. 

É nesse espaço que o professor Luis Venturi ministra suas aulas. Docente titular da FFLCH, ele propõe utilizar o ensino da geografia como forma de introduzir os estrangeiros à língua portuguesa.  Ele ministra o módulo conhecido como Básico Zero, para o qual são direcionadas as pessoas que possuem pouco ou nenhum conhecimento do português. 

“Muitos deles não sabem falar ‘oi’ ou ‘bom dia’. É com esse público que eu gosto de trabalhar. Com os mapas, eu acabo integrando o ensino da língua à geografia. Conceitos como maior ou menor, mais longe ou mais perto, números e adjetivos. Peço para eles descreverem o lugar onde moravam em seus países de origem e o lugar em que estão morando aqui. É uma mistura de cultura e língua portuguesa”, explica. 

Venturi conta que uma das dificuldades enfrentadas é integrar alunos recém-chegados ao conteúdo que é progressivamente trabalhado ao longo do semestre. “Todo sábado eu chego lá e tem gente nova. Como integrá-las? É difícil para a turma do Básico Zero seguir uma apostila, porque eu dou algo nesse sábado, mas semana que vem só meia dúzia dos alunos voltam, junto com oito novos.” 

Luis Venturi - Foto: Arquivo pessoal

“Trabalhar com inclusão é difícil e exige um certo jogo de cintura. Eu sempre vou para aula com um plano A, B e C. Aí eu chego, olho para a turma daquele sábado e vejo o que é possível”.

Aqueles que frequentavam as aulas há mais tempo ajudam os recém-chegados, como forma de praticar o idioma e de promover a integração. “É muito gratificante ver aqueles alunos que já estão conosco há algum tempo conseguirem perguntar o nome e contar de onde vêm, onde estão morando e há quanto tempo chegaram”, relata Venturi.

O professor aponta que a língua materna exerce grande influência nesse processo de aprendizagem. Cada grupo de falantes encontra no português diferentes níveis de dificuldade. 

Os francófonos, como haitianos, senegaleses e congoleses, encontram problemas com os tempos verbais, muito utilizados coloquialmente no português. Construções no pretérito imperfeito do subjuntivo, como “se nós fôssemos” ou “se eu tivesse”, são comuns no cotidiano brasileiro, mas muito difíceis para os estrangeiros. 

Os nigerianos, cuja língua materna é o inglês, têm muita dificuldade em diferenciar o feminino do masculino e o singular do plural. Na língua inglesa, a partícula “the”, por exemplo, funciona para todas as flexões dos artigos definidos (o, a, os, as) do português. 

“Já os árabes têm dificuldade em uma coisa bem simples: os verbos ser e estar. Eles não usam. Eles não falam ‘eu sou sírio’. Falam ‘eu sírio’, porque é tão óbvia a ligação entre as duas palavras que eles não usam o verbo. É difícil fazê-los falarem. E, ainda, o português tem a divisão entre ser e estar, que não existe em inglês e francês. ‘Ser’ para situações permanentes e ‘estar’ para situações passageiras”, explica Venturi. 

A situação fica ainda mais complexa no caso dos idiomas que não utilizam o alfabeto latino, como é o caso do árabe, ou quando os imigrantes e refugiados sequer foram alfabetizados em suas línguas maternas. “Entre as mulheres afegãs mais velhas, há pessoas sem letramento, inclusive em dari, variante do persa falado na região do Afeganistão de onde elas provêm”, complementa a professora Nanami .

Mapas e materiais estão disponíveis em árabe, inglês, francês e outras línguas – Foto: Maria Trombini

Primeiro contato

O trabalho do professor Venturi no ensino de imigrantes e refugiados é muito anterior ao seu voluntariado na Bibliaspa. Em 2014, ele foi convidado por alguns alunos da USP para ajudar nas aulas oferecidas pelo Cursinho Popular Mafalda aos estrangeiros. Ele assumiu a turma composta pela comunidade árabe, devido ao seu conhecimento da língua. 

As aulas aconteciam no prédio da Universidade Cidade de São Paulo (Unicid), que, assim como a Cáritas Arquidiocesana de São Paulo (Casp), apoiava a iniciativa da Casa Cultural Mafalda. 

No ano seguinte, Venturi propôs uma nova frente de atuação por meio da inscrição em um edital da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão da USP. O projeto não só foi aprovado, como recebeu o prêmio de Melhor Projeto de Extensão da USP 2015-2016.

“Eu tinha muitos alunos que participaram como voluntários. Saiu no rádio. Vieram médicos, advogados, todo mundo querendo ajudar. Foi algo incrível. Conseguimos juntar mais de 60 alunos, de 18 nacionalidades diferentes. Nós fizemos um fôlder para a campanha em quatro línguas: inglês, francês, árabe e português. Distribuímos em todos os lugares. Mobilizamos um grande público”, relembra Venturi.

As novas aulas passaram a ser ministradas no Departamento de Geografia da FFLCH. Entretanto, havia um problema: a locomoção até a USP.  De acordo com o Mapa de Georreferenciamento de Pessoas em Situação de Refúgio, lançado pela Casp e pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), a maioria dos refugiados ocupa a região central da capital paulista, estendendo-se também para as regiões leste e sul da cidade. 

Distritos Paulistas de Residência dos Beneficiários Atendidos em 2020

A analise da concentração habitacional da População de Interesse atendida em 2020 mostra uma ocupação quase completa do território municipal como domínio da região central. Verifica-se também uma tendência a ocupação da porção Leste do município em oposição à Zona Oeste. 

Os Distritos mais habitados dos atendidos em 2020 foram:

1- Sé – 281 PoC;
2- República – 261 PoC;
3- Cidade Dutra – 251 PoC;
4 Sapopemba – 174 Poc;
5- Brás – PoC

“Muitos alunos chegavam a São Paulo, iam às estações de ônibus ou metrô e não tinham dinheiro para a passagem. Teve casos da gente ter que ir buscar ou ficar indo e voltando com eles, porque não conseguiam chegar ao Departamento de Geografia”, conta o professor.

Depois de finalizado o tempo previsto no edital, Venturi passou a atuar na Bibliaspa, ministrando aulas semanalmente. “Com ou sem um projeto institucionalizado, estou sempre envolvido. Para a comunidade externa, para os refugiados, pouco interessa se tem projeto ou não. Eles precisam de assistência, das aulas e do apoio que a gente dá.” 

Geopolítica, movimentos migratórios e adaptação

De acordo com dados do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), foram autorizadas 243,2 mil solicitações de residência permanente ou temporária no Brasil em 2022. No mesmo período, o País reconheceu 50,5 mil pessoas na condição de refugiadas.

Número de registros de migrantes, segundo princípais países, Brasil 2022. Mapa: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/

Número de solicitações de reconhecimento da condição de refugiado por principais países, Brasil 2022 – Mapa: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/

O professor Venturi explica que a geopolítica do mundo influencia diretamente nas dinâmicas dos movimentos migratórios e, por consequência, no perfil do público atendido pela Bibliaspa. “A gente começa a ver notícias nos jornais e já prevê a vinda de novas pessoas.”

Ele lembra que, no começo de suas atividades, trabalhava com turmas inteiras formadas por alunos sírios, que fugiam da guerra iniciada em 2011. Pouco depois, a atuação do grupo Boko Haram, na Nigéria, fez com que recebesse muitos nigerianos durante alguns anos.

Em meio à pandemia da covid-19, um grave período de conflitos e bombardeios no Iêmen fez com que diversos iemenitas abandonassem suas casas. Em 2021, o governo dos Estados Unidos deixou o Afeganistão após 20 anos de ocupação. Com a tomada do poder pelo Talibã, muitos afegãos deixaram o País e pediram refúgio no Brasil. “Foi aquele caos social. A gente via pela TV eles acampados no aeroporto, esperando por uma vaga. Aí a gente teve que se desdobrar”, lembra.

“Atualmente, duas coisas têm acontecido: um aumento na quantidade e na variedade de nacionalidades do nosso público. Temos recebido, por exemplo, muitos refugiados da comunidade LGBTQIAPN+. A maioria vem do norte da África: Tunísia, Argélia e Marrocos. Também vieram alguns russos e bielorrussos, acredito que fugindo do alistamento obrigatório do exército. E, agora, esperamos receber alguns palestinos”, acrescenta Venturi.

Apesar das melhorias realizadas na infraestrutura, o professor Venturi ressalta que o espaço está ficando muito pequeno para o crescente público acolhido pela Bibliaspa: “As salas estão muito lotadas. Eu quero manter a minha! Gosto de pregar os mapas na parede”.

“Para a gente, não faz muita diferença. Eles são nossos alunos. A gente não fica perguntando se ele é refugiado ou imigrante; se veio ou deixaria de vir. Se ele quiser contar, a gente escuta. Isso faz com que eles se sintam bem.”

Crescimento

“Nós também  temos ambições. Queremos uma van, para talvez levá-los até Santos para conhecer a orla, ou algo do tipo. Muitos chegam aqui e não sabem nem se tem praia ou a que distância ela está. Queremos mostrar o Brasil”, conta o professor. 

Além disso, ele relata ser complexo conseguir que o apoio dos voluntários seja constante e duradouro. Venturi solicitou ao diretor da FFLCH, Paulo Martins, que fossem enviados e-mails para a comunidade uspiana divulgado a iniciativa, a fim de atrair mais voluntários. “Tivemos uma repercussão muito boa: foram dezenas de alunos querendo participar.” 

A repercussão da iniciativa entre os alunos da USP também é confirmada por Julia Sena, estudante de Geografia na FFLCH. “Há um interesse da comunidade. Muitos alunos foram voluntários por períodos e em anos diferentes. Se você mencionar para seus veteranos, eles falam ‘ah, eu também já fui voluntário’”.

Julia é voluntária na Bibliaspa e atua como intérprete, traduzindo algumas das aulas para o inglês, e auxiliar pedagógica. Ela, assim como o professor Venturi, acredita que o número de bolsas para projetos de extensão deveria aumentar. “A USP ainda faz pouco. As bolsas PUB, por exemplo, que eram um grande incentivo aos projetos de iniciação e extensão, sofreram um drástico corte no ano passado, pelo menos aqui na FFLCH”, aponta.

Julia Sena - Foto: Arquivo pessoal

Trabalho e diploma

O professor Luis Venturi diz que o Brasil é um dos principais destinos para imigrantes e refugiados por ser signatário de vários acordos. “É mais fácil para o refugiado conseguir um visto humanitário. Chega aqui, as crianças vão logo para a escola, sabendo ou não português. Recebem cartão do SUS, Registro Nacional de Estrangeiro (RNE) e carteira de trabalho”, destaca.

Apesar da diversidade de histórias de vida, boa parte dos estrangeiros chega ao Brasil com alguma formação: são médicos, advogados, engenheiros, professores ou outros. Venturi relembra a história de dois ex-alunos sírios que vieram para São Paulo e se mudaram para o Paraná para poderem concluir suas graduações. “Muitos chegam aqui já perguntando sobre revalidação de diploma. Na USP, isso não é muito fácil.”

Hoje, o processo de revalidação e reconhecimento de diploma estrangeiro pela USP custa R$ 2.840. “É uma mão de obra superqualificada que acaba sendo subaproveitada por problemas que, na minha opinião, são apenas burocráticos. Falta agilidade nessa inclusão. O Brasil sai perdendo”, opina Venturi.

Julia acrescenta que, por vezes, existe certa relutância em ir atrás dos trâmites necessários para a revalidação do diploma. “Para alguns, é difícil aceitar que estão em situação de vulnerabilidade. Lá, eles tinham carreiras consolidadas ou projetos e sonhos. Aí, chegam aqui, um país com língua e cultura extremamente diferentes e onde seus diplomas não valem absolutamente nada.”

Para o professor, é necessário um acolhimento institucionalizado, que promova políticas ágeis e eficientes para a inclusão acadêmica e profissional dos refugiados. 

“A minha proposta é que existissem cotas para refugiados e que se facilitasse mais a equivalência de diplomas, barateando ou até isentando de taxa esse processo. Eles também precisam vencer a barreira da língua, mas nisso a gente tem ajudado. Cada um faz sua parte.”

* Estagiária sob supervisão de Tabita Said


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